Omnitretas.
O Bernardo Motta, por alguma razão convencido de que o meu ateísmo se deve ao Richard Dawkins, recomendou-me que lesse autores filosoficamente mais sofisticados como o Edward Feser que, segundo o Bernardo, “limpa o chão” com o Dawkins. Em concreto, indicou-me um post do Feser criticando a alegada ignorância do Dawkins acerca da omnipotência e omnisciência do protagonista da ficção cristã. O problema que Dawkins aponta é que um ser omnisciente não tem o poder de mudar de ideias. Sendo um poder que nós temos, então um ser omnisciente não pode ser omnipotente. Eu diria até que será impotente, incapaz de mudar o curso de acções que já sabe inevitável, como se estivesse a ver um filme.
O Feser pretende “esclarecer” Dawkins começando por apontar que «para quase todos os teístas, “omnipotência” não implica o poder de gerar contradições (e.g. criar um quadrado redondo ou uma pedra tão pesada que nem um ser omnipotente a pode erguer)» (1). Isto é irrelevante porque o poder de mudar de ideias não é uma contradição da omnipotência. É apenas incompatível com a omnisciência. Mas é interessante porque põe em causa a omnipotência em si. Em primeiro lugar, parece-me muito pouco sofisticado, filosoficamente, apresentar como estabelecido que um ser omnipotente não pode gerar contradições só porque “quase todos os teístas” acreditam que é assim. Não me parece o tipo de coisa que seja legítimo decidir só pelo voto da maioria. Mas vamos assumir que mesmo um deus omnipotente é escravo deste axioma dos sistemas formais e, como Tomás de Aquino propôs, não pode fazer nada cuja descrição seja logicamente inconsistente. Ainda assim, há o problema dos restantes axiomas.
Será que um ser omnipotente pode calcular a raiz quadrada de -1 ou criar um triângulo cujos ângulos internos não somem 180º? Até ao século XVIII provavelmente diriam que não a ambas por ser contraditório que algo seja número e multiplicado por si próprio dê -1 ou que algo seja triângulo e os seus ângulos internos não somem 180º. Depois de Euler ter popularizado os números imaginários, a resposta à primeira já seria sim porque i é um número e é a raiz quadrada de -1 por definição. E com as geometrias não-euclideanas, a partir do século XIX, passou a ser possível haver triângulos cujos ângulos internos não somam 180º. Isto porque estas contradições só o são se usarmos certos axiomas. Com outros axiomas deixam de o ser e, na verdade, se abdicarmos do axioma da identidade nem sequer haverá contradições.
Outro problema é que podemos resolver cada contradição de várias formas diferentes. Por exemplo, se Deus tem o poder de erguer qualquer pedra, então não pode ter o poder de criar uma pedra impossível de erguer porque isto seria logicamente contraditório. Mas podemos resolver o problema ao contrário: se Deus tem o poder de criar qualquer tipo de pedra, inclusivamente uma pedra impossível de erguer, então não pode ter o poder de erguer qualquer pedra porque isso seria logicamente contraditório. Em ambos os casos Deus seria omnipotente, pela definição de Tomás de Aquino, porque em ambos os casos o seu poder só ficava limitado por contradições lógicas. Mas seriam duas omnipotências diferentes, a omnipotência de erguer qualquer pedra e a de criar qualquer pedra. Há infinitos casos destes. Por exemplo, a capacidade de criar varas tão compridas que sejam impossíveis de medir contra a capacidade de medir qualquer vara por muito comprida que seja. Ou a capacidade de criar cheiros tão pestilentos que não possa suportar contra a capacidade de suportar qualquer cheiro por muito pestilento que seja. Como consequência, há infinitas omnipotências diferentes e incomensuráveis. Nem se poder saber qual delas Deus terá nem porquê essa e não outra.
Mas a parte mais importante do post que o Bernardo recomendou é como resolve o conflito entre omnisciência e omnipotência, o problema de não poder mudar de ideias. «Deus é imutável e eterno. Ele não “muda de ideias” porque ele não muda sequer. […] Deus está completamente fora do tempo. […] Para Ele, toda a criação – incluindo todos os acontecimentos em todos os pontos do tempo – segue de um único acto criativo Seu». Isto é importante porque implica que o tempo não existe. Se a passagem do tempo presente vai tornando o futuro em passado então as verdades mudam e um ser omnisciente tem de ir mudando também para actualizar o que sabe. Dantes era verdade que eu tinha cinco anos mas agora já não é. Um ser imutável não podia saber, nessa altura, que eu tinha cinco anos e agora saber que já não tenho. Se existe um ser omnisciente e imutável então todas as verdades têm de ser imutáveis. Todo o universo tem de existir como uma forma fixa e imutável espalhada no espaço-tempo em vez de algo espacial que vai mudando com o tempo porque, se assim fosse, também o que é verdade mudaria e Deus teria de mudar. Mas se o universo é imutável e o tempo é uma ilusão então nada que dependa de mudança pode ser real. Acção, vontade, causalidade, intenção, culpa, mérito, nada disso pode existir se houver um ser omnisciente e imutável.
Com esta explicação, o Edward Feser não só confirmou que a omnisciência é incompatível com a omnipotência como também demonstrou que a omnisciência divina é incompatível com um universo dinâmico e tudo o que disso depende.
1- Edward Feser, Dawkins on omnipotence and omniscience
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