Fanatismo.
De vez em quando acusam-me de ser um ateu fanático. Normalmente, defendo-me apontando que escrever opiniões num blog é diferente da violência dos terroristas, da inquisição ou das claques de futebol. Mas agora o Helder Sanches fez-me perceber um aspecto mais fundamental do fanatismo. Se bem que seja preciso ser-se fanático para chegar a tais extremos de violência, também se pode ser fanático sem se ser violento. O Helder escreveu que está farto de «discussões sobre ateísmo por causa de ateus» que ele considera «fanáticos e irracionais»(1). Como discordámos recentemente acerca das afirmações do Dawkins (2), que indignaram o Helder, talvez a crítica também me seja dirigida. Ou talvez não. Seja como for, este “fanáticos e irracionais” ajuda a compreender porque é que o fanatismo é um problema também entre os ateus.
Quando fundamentamos uma opinião em razões, a opinião fica separada do que somos. Mesmo se as razões forem subjectivas. Se alguém se declara benfiquista porque gosta do Benfica, subentende-se que pode mudar de opinião se deixar de gostar do Benfica. O gosto e o afecto pelo Benfica são externos ao seu “eu” e podem mudar sem qualquer crise de identidade. Mas o benfiquista para sempre, até morrer, aconteça o que acontecer, encara o seu “benfiquismo” como parte intrínseca da sua pessoa, independente de quaisquer razões. É o tal fanatismo irracional a que o Helder alude. Ou seja, a diferença fundamental é que o fanático considera que a sua opinião é uma parte imutável e inalienável de si enquanto que quem não é fanático reconhece que a opinião não é a pessoa mas sim algo que a pessoa pode mudar.
Antes de continuar a exegese do texto do Helder, queria fazer um desvio por dois pontos que, apesar de tangenciais, me parecem merecer alguma consideração. O primeiro é que o fanatismo não depende do entusiasmo com que se defende uma posição. Ambos os benfiquistas se podem levantar e gritar com o mesmo júbilo quando o Benfica marca golo, mesmo que um seja fanático e o outro não. O fanatismo está apenas naquela confusão entre pessoa e opinião que surge por se descurar as razões. Ninguém é fanático só por gostar muito de alguma coisa. O segundo ponto é que, apesar do fanático considerar que o seu “ismo” faz parte do seu ser, na verdade nunca faz. O fanático também é capaz de mudar de ideias e só será fanático enquanto não perceber que tem essa capacidade. Um disparate recente do Gonçalo Portocarrero de Almada ilustra este ponto. O Gonçalo exige que o casamento civil seja indissolúvel para que os ateus tenham os mesmos direitos que os católicos. A justificação é que o casamento católico mantém os católicos casados mesmo que já não queiram, um “direito” que o ateu não tem (3). O erro do Gonçalo é assumir que o católico não pode deixar de ser católico. É a tal confusão entre opinião e pessoa que caracteriza o fanatismo. Na verdade, o casamento do católico é tão rescindível como o do ateu. Ambos duram até que as pessoas envolvidas mudem de ideias.
Voltando ao post do Helder, aceito a ideia de que o fanatismo é um problema tanto entre ateus como entre crentes. No caso dos ateus, e dos crentes de cá, não é um problema tão grave como as chacinas e barbaridades que os fanáticos violentos fazem em nome das suas religiões, tradições e ideologias políticas noutros países. Ainda assim, a dificuldade em distinguir entre pessoas e opiniões dificulta muito o diálogo. Por exemplo, o Helder critica os “novos-ateus” porque «consideram-se hoje superiores aos crentes, em inteligência, em moral, em cidadania», afirmando que é «uma atitude desinteressante com a qual não quero ser sequer confundido». Eu considero que assumir que os deuses são fictícios e que somos responsáveis pelo que fazemos é eticamente preferível e objectivamente mais correcto do que acreditar que vivemos sob o jugo de seres sobrenaturais e que temos de nos portar bem para evitar um castigo na outra vida. Não sendo fanático, não considero que ter uma opinião diferente da minha seja intolerância ou um ataque pessoal nem considero que a minha opinião ser mais correcta do que as alternativas implique que eu seja melhor do que os outros. As opiniões são uma coisa, as pessoas são outra. Mas o Helder parece ter sucumbido ao fanatismo. Teme ser confundido com uma atitude, sente-se indignado com as opiniões das quais discorda e assume que quem acha que tem razão necessariamente se considera superior aos outros.
O fanatismo é um problema também entre os ateus. As afirmações recentes do Dawkins sobre os muçulmanos e os prémios Nobel deram um exemplo disso. Não é que o Dawkins seja fanático. Ninguém é fanático só porque diz o que pensa, por muito provocatório que seja. O problema é que, tal como entre os crentes, também entre os ateus há muita gente que, por fanatismo, não consegue discutir certas coisas sem ficar com as cuecas entaladas no rego.
1- Helder Sanches, Humanista.
2- Treta da semana: isso não se diz…
3- Casamento civil indissolúvel, já!
Em simultâneo no Que Treta!