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Da necessidade de não definir

Estava a ler o livro “O Ocidente Dividido” de Jurgen Habermas quando dei com este pedaço de texto na transcrição de uma entrevista que lhe fizeram em 2004:

«O adjectivo fundamentalista tem uma conotação pejorativa. Com ele designamos uma mentalidade que se empenha em impor politicamente as suas próprias convicções e razões, mesmo quando estas são tudo menos universalmente aceites. Isto é valido especialmente no caso dos dogmas religiosos.»

Até aqui nenhum choque, a definição parece-me correcta de todos os pontos vista e além disso é clara e concisa. Mas há mais a dizer sobre o tema, como por exemplo a relação entre ortodoxia e fundamentalismo:

«Claro, não devemos confundir o dogmatismo e a ortodoxia com o fundamentalismo. […] Uma ortodoxia só se torna fundamentalista quando os representantes e defensores da verdadeira fé ignoram a situação epistémica de uma sociedade pluralista no que diz respeito às cosmovisões e insistem (até com recurso à violência) na imposição política e no carácter universalmente vinculador da sua doutrina.»

É óbvio a qualquer observador que a moral católica está longe de ser universal ou consensual já que se mesmo da Igreja não conseguem obter um consenso quanto mais fora dela. Quanto ao pluralismo a situação é ainda mais clara: pluralismo é algo que a ICAR abomina já que enquanto representante da única verdade tudo o resto são erros e mentiras que têm que ser combatidas, aliás responsabilizam a diversidade de opiniões e culturas no Ocidente cosmopolita como um factor de decadência.

Ora com estes pontos assentes podemos facilmente concluir que de facto a ICAR se trata de uma organização fundamentalista, já que no seu discurso público continua não apenas a defender que são detentores da Verdade (como é de esperar de qualquer religião) mas vão mais longe ao exigir aos governantes seculares o regresso aos míticos códigos católicos e ao exortar os seus seguidores a impor leis que promulguem essa visão. Isto é fundamentalismo puro e duro, a única diferença entre a ICAR e os islamitas é que o Vaticano não rapta pessoas para fazer chantagem com governos – pelo menos não abertamente… ainda está por apurar a totalidade de responsabilidade da Igreja no caso Ambrosiano que acabou em várias mortes no mínimo suspeitas.

A única garantia que temos contra tais atitudes potencialmente totalitárias é a construção, manutenção e valorização de um espaço público secular. E esse espaço público tem que necessariamente incluir a vida política já que não podemos esperar ter margem de liberdade pessoal se os legisladores não se comprometem com o ideal de neutralidade confessional que a sua posição exige. Em causa não estão as escolhas pessoais dos políticos ou detentores de cargos públicos, porque eles, como todos os cidadãos, têm o direito de as ter mas sim o reconhecimento de que a sua crença (em algo absoluto) é relativa dentro do espaço público e está em pé de igualdade para coexistir com outras sem que deva ser criada qualquer tipo de coerção para a impôr – coerção regra geral implantada pela “porta do cavalo” através de leis e medidas governamentais que de neutras nada possuem.

Por estas razões estou plenamente convencido que o projecto de civilização que Roma propõe além de ser totalmente anacrónico (digno da era pré-moderna) é profundamente subversivo para o bom funcionamento do tecido social, cultural e político de qualquer nação (ou conjunto de nações) civilizada já que ataca a raiz daquilo que mais valorizamos: a liberdade de opinião e escolha que só um espaço público laicizado torna possível.

Nota: o texto em itálico, que é parte de uma entrevista muito maior, pode ser lido na integra em: J. Harbermas; “El Occidente Escindido, Pequeños escritos políticos” ou no original: “Der gespaltene Westen. Kleine Politische Schriften”

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