Policarpo quer respeito mas não respeita
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Apesar do apregoado respeito pelas religiões e pela fé de quem acredita, alguns não hesitam em brincar com o sagrado; chegou-se mesmo a apregoar, em nome da liberdade, o direito à blasfémia. Fiquem sabendo que para nós que buscamos o rosto de Deus e procuramos viver a vida em diálogo com Ele, isso nos indigna e magoa (…)
com o sagrado não se brinca. O respeito pelo sagrado é algo que a cultura não pode pôr em questão, mesmo em nome da liberdade. A todos esses que sentem não acreditar em Deus, eu digo em nome do povo crente: a vossa dificuldade em acreditar em Deus, não toca na realidade insofismável de Deus. Nós respeitamos a vossa descrença (…)
. Mas respeitai a nossa fé, (…)
sobretudo respeitai Deus em quem acreditamos.»
José Policarpo inseriu novamente um pronunciamento político numa «homilia» (uma actividade que se supõe exclusivamente «espiritual»). Desta feita, o Cardeal-Patriarca formulou um pedido (ver mais acima), mas de uma forma (intencionalmente?) ambígua: não é claro se deseja uma lei que limite a liberdade de expressão criminalizando a blasfémia, ou se quer apenas que as pessoas se coíbam de exercer a sua liberdade quando isso lhe possa desagradar. Em qualquer dos casos, impôs limites aos que não cedem à «facilidade» de acreditar em «Deus»: não se pode troçar, diz ele, de «Deus», da «fé» e do «sagrado». O totalitarismo implícito no pedido é claro: Policarpo quer impôr a sua concepção do sagrado mesmo a quem não crê, e não exclui exigir leis que o ajudem nesse propósito (como, aliás, acontecia durante a Inquisição…). É caso para recordar que é fraca a fé que tem de ser protegida, pelas leis, de ideias contrárias, pois se fosse forte não necessitaria de exigir a quem não a partilha que se abstenha de a criticar.
Pessoalmente, tenho tanto interesse em insultar o «Deus» de Policarpo como o «Grande Manitu» ou o «Unicórnio Cor-de-Rosa Invisível». Porém, reservo-me o direito de dar uma resposta proporcional quando os católicos insultam a minha inteligência e a minha sensibilidade (o que acontece regularmente em Fátima), quando insultam as mulheres ou as minorias comportamentais (é desnecessário apresentar exemplos…), ou quando insultam os descrentes por o serem. E não o poderia fazer se houvesse um efectivo «delito de blasfémia», pois os insultos emitidos pela igreja de Policarpo estariam protegidos pelo carácter «sagrado» da sua sustentação dogmática…
Devo acrescentar que Policarpo, honestamente, não deveria preocupar-se tanto. Em Portugal, sem necessidade das leis liberticidas que ele parece desejar, vigora um consenso social que circunscreve e abafa a crítica à sua religião. Um exemplo: aquando da operação proselitista «Congresso da Nova Evangelização», Policarpo foi à televisão (pública) apoiado por dois católicos, para confrontar um único descrente (o grande José Barata Moura). No mesmo programa, e aquando da crise dos cartunes, havia um muçulmano entre seis participantes. Outro exemplo: alguma vez se ouve alguém dizer na comunicação social, em alto e bom som, que o Sol não pode estar a «mexer-se para cima e para baixo» em Fátima e quietinho em Lisboa? Não. Há muito respeitinho pelo catolicismo e pelas suas crenças, e sem este blogue haveria ainda mais. Último exemplo: na imprensa e aqui nos blogues, andou tudo a chamar nomes (geralmente, merecidos) a Freitas do Amaral e a outros por não defenderem a liberdade de expressão. Com a excepção admirável de
Vasco Pulido Valente, muito poucos ousam agora criticar Policarpo por dizer a mesmíssima coisa(*). E porquê? Porque é o líder índigena da igreja supostamente maioritária. A esses, que há poucas semanas se deliciaram a atacar uma religião que em Portugal nem 30 mil seguidores deve ter, recordo que também o Vaticano afirmou que «
a liberdade de expressão não pode incluir o direito de ofender os sentimentos religiosos dos crentes». Portanto, desafio-os a irem contra o «religiosamente correcto» católico e chamarem «islamófilo» e «inimigo do Ocidente» a Policarpo, e insinuarem que Ratzinger tem «ódio à nossa civilização» e que é um «apaziguador» (não se esqueçam de compará-lo com Chamberlain!). Onde está a vossa coerência, meus caros «guerreiros civilizacionais»?
(*)
Adenda: outra excepção ao «religiosamente correcto» católico é
Rui Pena Pires. De resto, a defesa da liberdade de expressão foi relativizada pelos «indefectíveis» do mês passado. É pena.