A (in)compatibilidade.
O Alfredo Dinis e a Palmira Silva debateram, no Contraditório, a compatibilidade entre ciência e religião (1). O Alfredo defendeu que são compatíveis, a Palmira defendeu o contrário. Como já escrevi aqui várias vezes, estou do lado da Palmira nisto. No entanto, não me parece que a Palmira tenha argumentado bem em suporte desta tese e, por isso, não resisto meter o bedelho. Vou só despachar o Alfredo primeiro.
O Alfredo defende que a ciência e a religião, em que “religião” quer dizer a dele, parecem ser incompatíveis apenas porque muitos interpretam mal os livros religiosos, em que “livros religiosos” quer dizer a Bíblia. Interpretando a Bíblia correctamente, em que “correctamente” é como o Alfredo diz interpretá-la, já fica tudo resolvido. Assim, o Alfredo pode dizer que «Nunca senti que o conhecimento científico abalasse a minha crença em Deus». Mas a questão não é se é possível definir e redefinir as crenças religiosas de forma a evitar contradições com o conhecimento científico. A questão é se a ciência é compatível com a religião. Inadvertidamente, o Alfredo demonstra que não: «A religião representa a recusa de acreditar que a vida humana não tem qualquer importância num universo que teria surgido por acaso e onde a Humanidade teria aparecido igualmente por mero acaso.» Esse cliché de ser preciso acreditar num deus para dar valor à vida é um disparate que, espero, já não exige refutação. Mas, à parte disto, o Alfredo afirma que a religião exige “a recusa de acreditar” em certas hipóteses. Categoricamente, e sejam quais forem as evidências que possamos vir a ter, o religioso recusa acreditar, por exemplo, na hipótese de não existirem deuses. Esta rejeição categórica de uma hipótese é incompatível com a ciência. QED.
A Palmira foca os conflitos históricos entre ciência e religião, dá exemplos interessantes e não diz nada que me pareça errado. No entanto, falha o fundamental. Afirmações como «a religião assenta na fé […] e a ciência em factos» ou «todas as “verdades” religiosas nas respectivas áreas de estudo foram refutadas cientificamente» enfraquecem o argumento porque não são consensuais. O crente dirá que há factos religiosos e factos científicos e que as verdades mais importantes da religião são inatacáveis. É verdade que isto exige usar os termos de forma subtilmente diferente, mas primeiro que se deslinde o que se quer dizer com “factos”, “verdade” e “científico” atolamos num lamaçal de desculpas onde é quase impossível progredir. Já lá estive; sei como é. Afirmar que a ciência assenta «no método científico» também adianta de pouco e até ajuda a ideia, falsa, de que a ciência é um jogo que se pode jogar num canto sem interferir com a religião que se joga no outro. Eu proponho uma abordagem diferente.
Por um momento, deixemos de parte a conversa da ciência e da religião. Em vez disso, vamos considerar um objectivo simples: quero que a minha concepção da realidade corresponda, o melhor possível, ao que a realidade é. Ou, parafraseando um professor de filosofia que tive, ninguém gosta de ser enganado*. Se é isto que quero, então o ponto de partida em qualquer questão acerca da realidade não pode ser acreditar, ter fé, desejar ou recusar alguma hipótese. Isso iria subordinar a resposta a um preconceito, precisamente o contrário do objectivo inicial. Se quero moldar, tanto quanto possa, as minhas ideias à realidade tenho de começar sempre por “não sei”. No ponto de partida tenho de ter as opções em aberto e só depois, com informação que o justifique, posso seleccionar entre as várias alternativas.
Isto, feito com afinco, é ciência. Se não sei a resposta tenho de considerar várias hipóteses. Como não sei, à partida, qual delas é a correcta tenho de encontrar forma de as testar, de as confrontar umas com as outras e de confrontar todas com a informação que obtenha acerca do que quero saber. Mesmo que uma hipótese sobressaia como claramente melhor do que as outras, tenho de manter em aberto a possibilidade de mudar de ideias por encontrar dados que a contradigam ou me ocorrer outra hipótese ainda melhor. Também tenho de estar sempre atento aos erros e garantir que a justificação para optar por uma hipótese em detrimento das outras não depende de crenças ou preferências pessoais. É isto, grosso modo, a que chamamos ciência.
A religião não é incompatível com a ciência no sentido de um cientista não poder ser crente. É possível abordar uns problemas com fé e outros com vontade de saber. Também não é incompatível no sentido dos produtos de uma serem forçosamente inconsistentes com os produtos da outra. Como o Alfredo explica, pode-se sempre reinventar os relatos religiosos de forma a resolver esse problema. Não se vê o escaravelho gigante que rebola o Sol pelo céu? Pois claro que não se vê. É um escaravelho invisível. Amén. A religião é incompatível com a ciência porque o objectivo e o ponto de partida são diferentes. O objectivo da fé religiosa não é mudar de ideias conforme as evidências. É agarrar um dogma com toda a força e nunca o largar. Por isso, o ponto de partida da religião não pode ser “não sei”. Pela fé o crente tenta convencer-se de que já sabe o mais importante. Não há consenso entre os crentes acerca do que isso seja. Pode ser o que está no Korão ou no Novo Testamento, pode ser lido à letra ou como metáfora, pode ser um deus ou vários. Mas, seja como for, o ponto de partida de cada religião são os dogmas que a fundamentam e o seu objectivo é nunca abdicar deles. É isto que é incompatível com a ciência.
* A disciplina era Filosofia Contemporânea mas a matéria que ele deu foi só sobre Kierkegaard, um teólogo protestante do século XIX. Daí que a coisa que mais vivamente me lembro dele foi dizer que ninguém gosta de ser enganado…
1- Contraditório, É possível conciliar ciência e religião?
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