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  • 10 de Junho, 2013
  • Por David Ferreira
  • Ateísmo

Até à eternidade

Sempre que leio um artigo de opinião do beato João César das Neves, a noite cai sobre mim. Um manto nevoento de obscurantismo escorre das paredes e desagua a meus pés, formando ao meu redor um pântano lodacento e nauseabundo a exalar um cheiro ominoso a lucidez estropiada. Nesse breve e eterno momento em que me deixo envolver espontaneamente na memória mofenta de fogueiras a carbonizar gritos desesperados e de cães enraivecidos em condicionada convulsão a espumar ignorância das gengivas apodrecidas a escorbuto e devoção, sinto nascer em mim uma força redobrada, uma vontade incontrolável de ser vulcão, de me cuspir com violência sobre os dejectos estupidificantes que os esgotos incontinentes da superstição e do proselitismo religioso evacuam sobre a razão.

João César das Neves é uma aberração mental. Um ser de inusitada e hermafrodita espiritualidade que fede a pergaminho carunchoso e a bolas de naftalina por cada poro de letra que escrevinha, em altaneira posição de submissão, entre um aperto de correia do cilício e uma chibatada no lombo macerado.

Diz o espécime que “desde o Iluminismo um punhado de ideologias tenta defender a tese ingénua de que a realidade se limita ao que vemos e tocamos”. E continua, referindo-se ao falhanço do ateísmo teórico, ao secularismo e ao materialismo que inundou a sociedade como causa dos nossos males, desenhando a sangue cerimonial pérolas da interpretação económica como: “Se o juízo divino não existe, os maus ganham sempre e este mundo não tem salvação. Quem vive só para o sucesso e prosperidade, na recessão perde a razão de viver. Quem apenas conta com a justiça humana assume vingança ou impunidade. Quem não tem a perspectiva da eternidade só pode ver uma crise financeira como o inferno.”

Critica quem se manifesta nas ruas veementemente contra a injustiça da tirania das elites endinheiradas, não percebendo que um grito de revolta não tem cotação na bolsa de valores, é uma catarse libertadora de quem não se permite à castração existencial, seja ela de origem ideológica, material ou metafísica. Confunde materialismo filosófico com a avidez de possuir bens, como se o segundo não fosse, porventura, apenas o resultado de uma patologia sociocultural, não tendo absolutamente nada a ver com o primeiro. Termina o economista com estilo e em apoteose, numa conclusão que não destoaria dos primitivos escritos bíblicos, onde alimenta a dependência e acalma o vício: “Alguns anos de aperto parecem muito pouco a quem se dirige à vida eterna. Sofrer na companhia de uma Providência benevolente, que acompanha amorosamente cada passo da nossa vida, permite afrontar sem medo os perigos mais assustadores. O testemunho dos mártires de todos os tempos é um consolo para quem apenas enfrenta falência ou desemprego. A certeza de que o Deus de amor terá a última palavra em todos os assuntos humanos liberta-nos de dúvidas ou temores. Da sua fé, o crente obtém a liberdade face aos acasos, a segurança nas tribulações e, acima de tudo, o bem mais raro nas crises financeiras, a esperança.”

João César das Neves é um crente inveterado, um cruzado moderno que a comunicação social parcial, abstrusa e politicamente correta patrocina desavergonhadamente. Acredita na vida após a morte. Não explica como será essa vida. Mas, como não é ingénuo como os ateus, tem a certeza que ela existe. A história faz-se de pessoas inteligentes como João César das Neves. Não da realidade, mas da interpretação que essas pessoas fazem dela. Basta ter poder, basta ter dinheiro. É com estas duas realidades que se constroem e cimentam as mentiras que a ilusão de uns determina como status quo para que os outros lhes satisfaçam as vontades e lhes apaziguem o medo, o medo do desconhecido, o pior dos medos, pelo sim pelo não.

Para o beato indefetível, a crise é uma bem-aventurança. O desespero que provoca deixa campo aberto para a espiritualidade, para a servidão e para as oferendas do pouco que sobra a bonecos de madeira e barro, ouro que a caridade pia da hierarquia católica derrete para oferendar ao seu Deus invisível e indiferente majestosas catedrais de adoração, quiçá mais umas quantas pistas de rastejamento a acrescentar ao joelhódromo da Nossa Senhora da Inocência.

A caridade torna-se então mais que uma necessidade, uma inevitabilidade. É desta virtude que se alimentam os parasitas sociais; os que falam em nome da fome sem lhe saber o gosto; os que falam nos valores da família mas cuja cobardia moral os impede de apontar o dedo aos amigos da mesma cor que, nos bastidores das elites, tomam opções políticas e económicas que irão contribuir para desmembrar essas mesmas famílias, as famílias dos outros; os que querem atribuir culpas à sociedade pela pandemia que eles próprios criaram em laboratório.

Para o esbirro de Escrivá, os problemas da humanidade apenas se resolvem sobre os joelhos, de mãos postas a adorar dois paus em cruz. Deus, esse ser que a imaginação pia confirma, não obstante toda a realidade não o demonstrar e muito menos certificar, entretanto, vai assistindo a tudo, impávido e sereno, enquanto querubins, seres imateriais mas luzentes como uma estrela a emitir fotões, se atarefam na construção do tribunal onde um dia o criador irá julgar todas as almas pelos pecados cometidos com que ele próprio os infetou à nascença.

O julgamento de Deus faz tanto sentido como a doutrina cristã. Os que introduzem a doença são os mesmos que incriminam os doentes por não serem sãos.

João César das Neves será, neste teatro surrealista onde rasteja a loucura credibilizada que publicita, uma alma privilegiada que atravessará a passadeira vermelha rumo à eternidade. O ter dado esmola a um pobre e não se ter coibido de ter feito alarde de tão caridoso e honroso ato num artigo de sua autoria, confere-lhe toda a credibilidade, que os Santos atestarão em consonância. Para todos os que vivem com os pés assentes na terra, é apenas um ser inferior a merecer escárnio, porque o seu discurso é um atentado à inteligência de todos os seres humanos, crentes ou não, tenham-na ou não; um economista transtornado, cujo estado avançado de insanidade o impede de ajuizar com clareza os verdadeiros “pecadores” apesar de conviver com eles todos os dias. Um verdadeiro religioso, então, como gosta de se auto-intitular.

Deus, um Deus qualquer, teria vergonha desta gente que o vende para obter lucro, mesmo que seja um lucro imaterial, metafísico. Um lucro narcisista até à eternidade.

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