A génese e expansão das guerras da religião modernas
Há mais de um ano escrevi que um dos principais sinais históricos que encontramos invariavelmente em épocas de crise é a adesão de pessoas a vertentes (religiosas ou políticas) que se caracterizam por um radicalismo extremo e uma inflacção do sentimento de pertença a um grupo que assuma o papel de protector e detentor da VERDADE ou MORAL absolutas. Um maniqueísmo exacerbado dos nós (os bons) e dos outros (os maus), do Bem contra o Mal.
Hoje os cartagineses são sortidos mas, tal como no século II a.C., há muitos emuladores de Marco Pórcio Catão, censores moralistas que zelam pela moral e bons costumes respectivos e pela punição dos que consideram ideólogos do mal. Tal como Catão, o objectivo dos pregadores é exponenciar o ódio das populações contra esses supostos ideólogos do mal, transformando-o num sentimento nacionalista/de grupo que deixe em segundo plano os problemas sociais, políticos e outros que assolam as respectivas sociedades, prometendo muitas vezes que a eliminação desses ideólogos do mal será simultaneamente a resolução desses problemas.
Não subscrevo a tese do choque civilizacional de Samuel Huntington (que previa há uma década que este seria inevitável no pós guerra fria), mas acho que de facto o maniqueísmo ou lógica bipolar existente antes da queda do muro era um elemento aglutinador que prevenia a eclosão dos conflitos regionais a que agora assistimos e o ressurgimento dos fundamentalismos religiosos, a praga anacrónica do século XXI. Com a população mundial desiludida da política, nos locais onde a tensão social é mais aguda assistimos à substituição dos memes ideológicos pelo memeplexo da religião. Assim, temos assistido nos últimos tempos à eclosão de conflitos religiosos um pouco por todo o Globo, sem nada a ver com o suposto conflito de civilizações, mas em que os intervenientes recorrem ao termo teológico cunhado por Agostinho, o de guerra justa, isto é, aquela que obedece a um desígnio divino ou vinga injúrias (à religião, claro).
O século XXI tem sido assim o século das «guerras justas» religiosas que varrem toda a Terra, algumas das quais para que já alertámos no Diário Ateísta, por exemplo na Tailândia, mais concretamente no sul da Tailândia, Nigéria, Indonésia, na Rússia entre várias religiões, na Tchetchénia e no Afeganistão. E não esqueçamos ainda que também G. W. Bush afirmou estar a cumprir uma missão «divina» quando decidiu invadir o Afeganistão e o Iraque. Assim como foi o reacender dos conflitos religiosos nos Balcãs entre bósnios muçulmanos, sérvios ortodoxos e croatas católicos o rastilho da sangrenta guerra que resultou no desmembrar da Jugoslávia.
Mais recentemente, nas Filipinas, um país em que a esmagadora maioria da população é católica, um massacre de cristãos por um grupo de fundamentalistas muçulmanos foi considerado «um duro golpe para a esperança de paz», especialmente na zona de actuação da Moro Islamic Liberation Front, já que agora «qualquer incidente pode despoletar uma guerra de religiões».
Há menos de uma semana terroristas que se pensa pertencerem ao grupo extremista Abu Sayyaf (Portadores da Espada) assaltaram uma quinta em Patikul, assassinando seis cristãos, incluindo uma bébé de 9 meses. De acordo com um dos sobreviventes os assassinos perguntaram às vítimas qual era a sua religião antes de abrir fogo sobre eles.
Também em Caxemira, alvo de acesas disputas entre a Índia e o Paquistão, o conflito de poder se está a transformar num conflito de religiões. Uma manifestação de muçulmanos enfurecidos pelo que afirmaram ser uma profanação do Corão pelos budistas locais resultou em dez feridos, incluindo cinco polícias, e danos materiais. Os manifestantes, que incendiaram várias casas e carros, exprimiam a sua revolta pelo aparecimento nas ruas de Leh, na região de Ladakh de maioria budista, de várias páginas rasgadas do Corão.
Muitos dos nossos leitores crentes afirmam que as religiões não são culpadas do aproveitamento que delas se faz para justificar a «justeza» de violência sortida. Para mim isso só seria verdade se os responsáveis religiosos deixassem claro aos seus seguidores que a religião é algo do domínio privado que não deve ser misturado com a res (coisa) pública. Se advogassem a estrita separação do Estado/política e da religião. Infelizmente não é isso que acontece em alguma das religiões dominantes, aliás verifica-se exactamente o oposto. Todas elas identificam a laicidade e/ou o «relativismo» concumitante com a ideologia do mal, responsáveis pelos problemas do mundo ou das respectivas sociedades e advogam que estes só podem ser resolvidos com uma estrita adesão aos respectivos ditames. Com os resultados que conhecemos…