Por um punhado de cartunes: laicidade e clericalismo
Aconteceu-me um dia, já não sei a propósito de quê, falar do meu ateísmo a um muçulmano com quem estava sentado à mesa. O meu comensal rapidamente me informou, com veemência, de que eu não podia dizer o que pensava. Ainda me recordo de como fiquei atónito.
Serve isto, hoje, para sublinhar que ceder na expressão do que pensamos pode começar na censura de caricaturas de Maomé, mas no limite leva a que eu não possa dizer que sou ateu. Como é evidente, não me podem impedir de pensá-lo no mais inalienável dos meus espaços de liberdade: os 1100 ou 1200 centímetros cúbicos da minha caixa craniana. Mas qualquer ateu que não esconda o que pensa é uma ofensa ambulante para os islamistas.
A polémica actual foi originada por caricaturas que poderiam ser mais pertinentes (é pena que se limitem à violência terrorista de indubitável inspiração maometana, e não foquem as mutilações sexuais efectuadas a coberto de algumas tradições islâmicas, ou a opressão das mulheres justificada pelo Corão) e que foram publicadas num jornal tão «religiosamente correcto» que nem se atrevera a publicar cartunes anti-cristãos. No entanto, a polémica pôs a nu o fanatismo e o totalitarismo de alguns muçulmanos extremistas que desejam condicionar a liberdade de expressão (e o decorrente direito à blasfémia) de países em que não vivem e que talvez nem saibam situar no mapa. E desencadeou um debate sobre os limites da liberdade de expressão, no qual felizmente quase todos concordamos que o único limite consensual será a difamação, que se determina nos tribunais (embora existam bons argumentos a favor da ilegalização do incitamento à violência). Os que não concordam têm estado silenciosos, mas mais tarde ou mais cedo tentarão aproveitar a cobardia de alguns governos (incluindo o nosso) que não fizeram o que se requeria: afirmar que os cidadãos são livres de dizer disparates e de se insultarem uns aos outros, por muito gratuitas que algumas provocações pareçam, desde que assumam a responsabilidade pelo que fazem.
No Diário Ateísta, já levamos mais de dois anos em que temos blasfemado todas as semanas, senão mesmo todos os dias. Sempre o fizemos conscientes da distinção entre ridicularizar ideias e pessoas. As últimas merecem-nos respeito, entre as primeiras há as erradas (o criacionismo ou a ressurreição) e as liberticidas (a autoridade do clero em matérias políticas ou éticas, por exemplo). As reacções ao que escrevemos, pelo contrário, já passaram por insultos e ameaças, geralmente com aquela «coragem» que o anonimato confere (pela nossa parte, assinamos tudo o que escrevemos).
Acompanhámos cuidadamente, no Diário Ateísta, a lei sobre o «incitamento ao ódio religioso» no Reino Unido (a propósito: foi aprovada, com alterações, a semana passada). Demos conta do caso do livro que conta a vida de «Jesus Cristo» em banda desenhada, que foi proibido na Grécia (o autor chegou a ser condenado a uma pena de prisão). Noticiamos muitos outros casos de blasfémia. No entanto, nunca houve tanta agitação por um caso de blasfémia. Nem quando Hashem Aghajari foi condenado à morte no Irão, nem quando Younus Shaik esteve preso no Paquistão, nem quando um director de uma revista afegã foi preso. A presente crise internacional, que se deve a um punhado de cartunes, só é possível porque muitos muçulmanos ainda não compreenderam que a religião não pode ser critério englobante da vida social, e portanto tentam condicionar até sociedades em que os muçulmanos são uma pequena minoria. Se os muçulmanos se reduzissem a tentar limitar a liberdade de expressão nos países em que se crêem maioritários (como fazem os católicos, quase tão totalitários como os muçulmanos) não haveria escândalo. O total totalitarismo (passe o pleonasmo) e a violência, tornaram o Islão o maior problema internacional da actualidade.