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A primeira encíclica

Nove meses depois de entronizado, Bento XVI debita a sua primeira encíclica, datada de 25 de Dezembro mas lançada em 25 de Janeiro, data da suposta conversão de Paulo. A data escolhida para a vernissage não me parece inócua e numa primeira análise do texto espero explicar porque a acho preocupante.

Mesmo o tema da encíclica, o amor, apresentado como algo apenas aceitável se cristão a la Ratzinger, que pareceria inofensivo a um leitor mais incauto, não o é de facto já que com esta primeira encíclica Bento XVI pretende marcar «pontos». E fá-lo em primeiro lugar por não referir, contra o que é hábito em encíclicas papais, as obras sobre o tema de anteriores papas, nomeadamente de João Paulo II, que escreveu aquela que é considerada por muitos cristãos a obra de referência sobre o amor marital, «Amor e responsabilidade».

Mas há duas citações a Gregório Magno (540-604), o papa que inventou os sete pecados mortais e que no seu Responsum afirmou «O prazer sexual nunca ocorre sem pecado» e que nas suas reflexões sobre o prazer sexual realçava «não basta dizer que o prazer não é meta lícita nas relações sexuais, mas quando ocorre, há transgressão das leis do matrimónio». Este papa foi responsável igualmente pela cristianização das Ilhas Britânicas e pela divulgação da música de eleição do actual Papa, o canto litúrgico típico pré Concílio Vaticano II, conhecido como canto gregoriano, e poder-se-ia pensar que foi o único Papa citado nesta primeira encíclica de Bento XVI pelo último motivo, já que enquanto Ratzinger carpiu a degeneração da música sacra, associada às formas destrutivas ocorridas durante a implantação da reforma litúrgica, decidida pelo Concílio Vaticano II.

Por outro lado, com esta primeira encíclica Ratzinger, que cita Aristóteles (mas não Tomás de Aquino), Virgílio, Descartes e até o epicurista Pierre Gassendi, que permitiu que professar o atomismo não fosse equivalente a uma sentença de morte, faz uma apologia da patrística com uma citação de Ambrósio, que se notabilizou pela defesa da «virtude» máxima cristã, a virgindade, e três citações do misógino Agostinho.

Ou seja, com esta encíclica sobre o amor, que segue estritamente a teologia cristã que não apenas recusa vida sexual a Cristo como também a seus pais, Bento XVI não só reitera como válida apenas a visão agostiniana sobre o amor, nomeadamente sobre o papel da mulher (não falta o criacionismo cristão com a mulher a ser «plasmada» de uma costela de Adão) mas refuta as «modernices» blasfemas sobre a legitimidade do amor físico, estabelecendo-se como o teólogo para que os cristãos devem olhar sobre estas questões.

De facto, ao condenar como erro a separação de eros (amor «mundano») e agape (como expressão do amor fundado sobre a fé) afirmando «quando as duas dimensões se separam completamente uma da outra, surge uma caricatura ou, de qualquer modo, uma forma redutiva do amor» sem sequer o citar, Bento XVI pretende anular a influência do bispo de Lund e influente teólogo do século XX, Anders Nygren, que com a sua obra de 1932, «Agape e Eros», marcou a forma como o mundo cristão moderno vê o amor. Também não mencionado mas obviamente refutado é C.S. Lewis (sim, o mesmo das Crónicas de Nárnia) mais concretamente o seu livro «Os quatro amores», que distingue quatro tipos de amor (igualmente válidos), storge (afecto), philia (amizade), eros (amor erótico ou romântico) e agape (o amor cristão por excelência).

De uma forma magistral e por isso mesmo mais preocupante, nesta encíclica curta, incisiva e completamente cristocêntrica (nos antípodas do que nos habituou João Paulo II), Ratzinger, que é na minha opinião o Papa mais inteligente que ocupou o trono papal, resolve igualmente as questões «fracturantes» que agitam as hostes católicas. Ao afirmar «numa orientação baseada na criação, o eros impele o homem ao matrimónio, a uma ligação caracterizada pela unicidade e para sempre; deste modo, e somente assim, é que se realiza a sua finalidade íntima» Bento XVI reafirma a oposição da Igreja à contracepção, implicitamente ao aborto, a qualquer relacionamento fora do matrimónio, ao divórcio e não só ao casamento homossexual como à homossexualidade. Oposição reiterada e reforçada quando afirma que «o matrimónio baseado num amor exclusivo e definitivo torna-se o ícone do relacionamento de Deus com o seu povo e, vice-versa, o modo de Deus amar torna-se a medida do amor humano». Ao refutar a possibilidade de separação do amor a Deus e do amor «terreno», isto é, dos relacionamentos intímos, Ratzinger reafirma o que já tinha apelado em Colónia, que é indispensável que os católicos voltem às bases do cristianismo (identificadas com a patrística nesta encíclica), rejeitem o secularismo e a «religião faça você mesmo».

Mas é a segunda parte da encíclica, estritamente política, que se revela mais preocupante. Explicarei porquê no próximo post.

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