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Dois milénios de obscurantismo: Inquisição

Na minha análise das razões que explicam o obscurantismo imposto pela Igreja católica durante a Idade Média figura proeminentemente a Inquisição e a perseguição de hereges, crentes em outras fés e «bruxas». A definição de herege dada pelo teólogo proscrito por Bento XVI, Leonardo Boff, é a minha favorita até porque ilustra perfeitamente as causas biológicas, a serem explanadas em breve, dessa longa noite obscurantista.

Segundo Leonardo Boff o herege é:
«(…) aquele que se recusa a repetir o discurso da consciência colectiva. (…) Por isso está mais voltado para a criatividade e o futuro do que para a reprodução do passado.».

Para o catolicismo medieval eram consideradas heresias todas as formas de pensamento que não obedecessem estritamente às emanações da hierarquia da Igreja. Ou seja, eram hereges todos os que ousassem sair do controle rígido efectivado pela Igreja, todos os que não aceitassem as orientações, práticas, concepções e preconceitos da Igreja como sendo a verdade «absoluta». Assim, eram hereges todas as pessoas que acreditavam, aceitavam ou mesmo divulgavam quaisquer ideias que se desviassem minimamente da doutrina concebida pela Igreja romana, o que incluía, obviamente, quem ousasse usar perversa e culpadamente a razão em incursões proibidas pela «má» ciência de Agostinho de Hipona.

A Inquisição foi a forma a que a Igreja recorreu para perseguir tudo e todos que não se conformassem aos moldes que esta impunha, nomeadamente que se permitiam ao uso «blasfemo» da razão.

Problema que começou a surgir nos finais do século XII, quando a dita Reconquista da Península Ibérica começou a ter sucesso, (dita Reconquista porque o objectivo foi a recuperação de terras sob domínio árabe às quais os cristãos acreditavam ter direito) graças à fragmentação do califado de Córdoba. Reconquista que pôs os incultos cristãos em contacto com uma civilização cultural e cientificamente muito mais avançada e cujos focos de infecção principal se situaram na Córdoba cosmopolita, elegante e educada, com uma comunidade judaica muito importante de que se destaca um dos seus mais prestigiados filósofos, Maimonides (1135-1204), e na académica Toledo, que expuseram o mundo cristão não só à filosofia aristotélica sem censuras (o que determinou o período seguinte da escolástica) mas também à matemática dita árabe.

E especialmente a matemática porque o crescimento económico de cidades como Florença, Veneza e Pisa, implicava a existência de conhecimento impossível de satisfazer pelos mistícos scholasticus. Conhecimento que possibilitasse cálculos prosaicos como os envolvidos em empréstimos e juros, preços de revenda, investimentos, custos dos seguros das viagens, etc. As necessidades económicas ditaram a criação de uma nova instituição educativa: a Botteghe ou Scuole d’abaco (Escola de Ábaco), cujo primeiro Maestri d’abaco (mestre de ábaco, ou cálculo) foi, provavelmente, o famoso Fibonacci da série que tem o seu nome ou Leonardo de Pisa (ca. 1175-1250). Estas escolas, dirigidas a um público diverso desde filhos dos mercadores, aspirantes a funcionários públicos a aspirantes a pintor (Piero della Francesca frequentou uma escola de Ábaco), escultor ou arquitecto, ensinavam essencialmente a matemática indo-árabe. Fibonacci estudou com um mestre árabe e, tal como Fibonacci, cada vez mais europeus se atreviam a algo proibido até então: usar os neurónios para algo mais que lucubrações sortidas sobre Deus e os Evangelhos.

Assim a Igreja precisava de um «cão de fila», a Inquisição, que exercesse não só uma severa vigilância sobre o comportamento dos fiéis, assegurando que não eram contaminados com toda a produção cultural e inovações científicas que o contacto com os infiéis catalizou, como controlar e tentar cercear toda esta produção intelectual anti-cristã. Na verdade, a Igreja receava que as ideias inovadoras conduzissem os crentes à dúvida religiosa e à contestação da autoridade do Papa. As novas propostas filosóficas ou científicas eram examinadas (e cortadas radicalmente) pela Inquisição, exame que mais tarde, depois da invenção da prensa por Gutenberg que dificultou o trabalho inquisitoral, culminou na criação do Index auctorum et librorum prohibitorum, o catálogo dos livros cuja leitura era proibida aos católicos, sob pena de excomunhão.

A origem da Inquisição remonta ao século IV, quando se iniciam as perseguições contra os hereges. Nesta época, o movimento ainda não era institucionalizado, e no período que vai dos séculos VI ao IX o seu poder era restrito. A partir do século X, a Inquisição vai assumindo um papel cada vez mais importante. Com o IV Concílio de Latrão, de 1216, o papa Inocêncio III estabelece o metodo inquisitio e após o Concílio de Toulouse, em 1229, a sua organização foi formulada, sendo oficializada em 1231 pelo Papa Gregório IX. Inserido num cenário ainda de poder eclesiástico absoluto e soberano este Tribunal é instaurado essencialmente para perseguir os hereges que começavam a incomodar os alicerces do poder da Igreja católica. Em 1252 o poder da Inquisição é reforçado com a santificação da tortura pelo Papa Inocêncio IV que no Ad Extirpanda, diz que os hereges «podem ser torturados a fim de revelar os próprios erros e acusar os outros, como se faz com os ladrões e salteadores» e em que propõe que os heréticos irrecuperáveis devem ser queimados vivos na fogueira. Na prática, um testemunho era suficiente para justificar o envio para a câmara de tortura do acusado e quanto mais débil a evidência do crime, mais severa era a tortura.

O Manual dos Inquisidores, o Directorum Inquisitorum (escrito em 1376 por Nicolau Eymerich e revisto e ampliado em 1576 por Francisco de la Peña) é uma compilação da praxis da Inquisição desde a sua criação formal, um tratado dividido em três partes: a) o que é a fé cristã e seu enraizamento; b) a perversidade da heresia e dos hereges; c) a prática do ofício do inquisidor que importa perpetuar, dá conta, na secção b), que:

«Aplicar-se-á, do ponto de vista jurídico, o adjectivo de herético em oito situações bem definidas. São heréticos:
a) Os excomungados;
b) Os simoníacos;
c) Quem se opuser à Igreja de Roma e contestar a autoridade que ela recebeu de Deus;
d) Quem cometer erros na interpretação das Sagradas Escrituras;
e) Quem criar uma nova seita ou aderir a uma seita já existente;
f) Quem não aceitar a doutrina romana no que se refere aos sacramentos;
g) Quem tiver opinião diferente da Igreja Romana sobre um ou vários artigos da fé;
h) Quem duvidar da fé cristã.»

Nestas oito alíneas cabem todos os que não aceitavam de cruz o que a Igreja de Roma determinava ou qualquer um que se considerasse ter ofendido os costumes (as tradições ainda tão invocadas hoje em dia) e a fé cristã da Santa Madre Igreja, para além dos culpados do costume: judeus, cristãos novos, marranos, sodomitas e bruxas (boa parte parteiras que, inspiradas pelo demo, ajudavam parturientes a «escapar» ao castigo ordenado pelo Senhor de parirem em dor).

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