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Um clerical anglófilo e francófobo

João Carlos Espada (JCE) constitui para mim uma referência intelectual de gabarito comparável a João César das Neves e Boaventura Sousa Santos. Sou um leitor habitual das suas colunas sociais do Expresso, onde fala sempre de clubes britânicos, idas à missa e outros comportamentos exóticos que me fascinam. No seu artigo deste Sábado, JCE defende a permanência dos crucifixos nas salas de aula das escolas públicas a partir de princípios políticos comunitaristas e tradicionalistas. O artigo consiste numa sucessão de estorietas sonsas em segunda mão, das quais não se segue qualquer conclusão óbvia, a não ser a de aceitar submissamente os preconceitos e constrangimentos nelas evocados.

A primeira estorieta, contada de forma deliberadamente capciosa, refere um artigo de Umberto Eco. A acreditar em JCE, o escritor italiano veria «com crescente preocupação o ataque ao cristianismo em nome do laicismo», um ataque que conduziria a um «vazio» logo preenchido pelo «paganismo», por leituras do «Código Da Vinci» e finalmente pelo fascismo, e ao qual Umberto Eco resistiria fazendo o presépio com o neto. Como rejeito tanto o cristianismo como o pós-modernismo, afoitei-me a procurar o artigo de Umberto Eco. Não foi tempo perdido: na realidade, JCE induziu os seus leitores em erro. O escritor italiano não refere qualquer «ataque do laicismo» ao cristianismo: esmera-se a condenar as tontices pós-modernistas da «Nova Era» e a fúria consumista (o que eu compreendo e aplaudo) e a opôr-lhe a religião, que considera uma necessidade natural da espécie humana (o que eu já não acompanho).

A segunda estorieta diz respeito a David Cameron, o candidato favorito à liderança do Partido Conservador. JCE, fanático dos princípios anglo-saxónicos segundo os quais «o pessoal é político» e a identidade religiosa deve ser explorada para fins eleitorais, elogia Cameron por este «afirmar claramente a sua fé cristã» numa entrevista televisiva. Creio que JCE não se apercebe de que quem legitima a exibição pública do privado, quer este seja o privado religioso ou familiar, justifica também a devassa pública da intimidade de quem assim se exibe, e dos seus desvios aos mandamentos religiosos ou às lealdades conjugais. Também por isso e ao contrário de JCE, parece-me preferível que o debate político se centre em questões de interesse público, e não em sentimentos privados, sejam eles a fé ou a «identidade» religiosa.

A terceira estorieta é sobre outro cronista do Daily Telegraph que, aparentemente, protestou contra a retirada de símbolos religiosos dos espaços públicos, embora não seja claro se as escolas britânicas aí se incluem. Esta estorieta parece-me suspeita, quanto mais não seja porque não é um hábito muito protestante andar a espalhar símbolos religiosos, particularmente crucifixos, pelas escolas.

A quarta estorieta é sobre a Elizabeth, por acaso rainha do Reino Unido, e líder formal da Igreja Anglicana. JCE, que (por preguiça?) não consegue escrever um artigo inteiro sem citar longamente terceiros, transcreve uma passagem de um discurso da senhora, em que ela nos diz que «todas as pessoas (…) podem encontrar significado e propósito no Evangelho de Jesus Cristo». Nem Elizabeth nem JCE parecem querer conceder-nos a possibilidade de recusarmos o cristianismo como referência de vida, uma opção que, no entanto, constitui para muitos de nós uma consequência elementar da liberdade de consciência.

No parágrafo final, JCE tira uma conclusão que não surpreenderá os seus leitores habituais: a culpa é dos franceses. Se fosse tudo como em Inglaterra, se todos tentássemos ser lordes britânicos e falar com batatas quentes na boca, se todos espumássemos de raiva cada vez que ouvíssemos falar francês ou falar da França (seja do laicismo ou dos cruássans), então o mundo seria um paraíso. Mais, JCE sugere que a solução perfeita será a adaptação das leis gerais do Estado a todas as «realidades locais» e «circunstâncias particulares», incluindo naturalmente a adaptação da Constituição a todas as tradições religiosas e costumes comunitários. Porém, se seguíssemos esta sugestão, não apenas os crucifixos continuariam nas escolas públicas portuguesas de todo o país, como seriam substituídos na península de Setúbal pela foice e pelo martelo, e na Madeira seriam acompanhados pelo retrato de Alberto João Jardim. Esta perspectiva horroriza-me, mas parece maravilhar JCE. Sugiro a JCE que seja mais ousado ainda e assuma que defende também que as leis que criminalizam as mutilações genitais efectuadas a menores sejam adaptadas às tradições das comunidades. Não é suficiente manter em vigor uma Concordata que em cada alínea faz uma discriminação positiva a favor da ICAR: cada comunidade que faça as suas leis. Com JCE como Grande Timoneiro, voltaremos à Idade Média. Em frente, para trás!

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