Laicismo: Democracia vs Teocracia
Parece haver um generalizado consenso entre ateus, agnósticos e crentes de que o laicismo é fundamental para a democracia e para o estado de direito tal como o conhecemos. Pode ser que, na prática, sejam os ateus quem acaba por lutar mais em defesa da laicidade quando porventura alguma lei ou medida governativa ameaça este princípio (ocorreu-me a Bíblia manuscrita…), mas poucos crentes ousam duvidar da legitimidade deste valor, e nenhum que eu conheça considera que a democracia e o estado de direito sejam compatíveis com a ausência dele (é uma questão do foro jurídico, mas intuitivamente óbvia para qualquer um).
Há, no entanto, pessoas que não consideram a Democracia o sistema mais adequado para a nossa sociedade. Há quem defenda diferentes sistemas de poder (Anarquia, Despotismo, etc…); e há quem defenda, dentro do Despotismo, diferentes formas de representação desse poder. Há uma forma de representação do poder despótico que é particularmente antagónica do princípio da laicidade: a Teocracia.
Será que a Teocracia é uma melhor forma de organizar um estado do que uma Democracia Laica (passe a redundância)?
Para responder a esta pergunta, faz sentido pensarmos numa outra: Deus existe?
Se não, então a Teocracia parece um sistema de poder ridículo, e penso que todos concordarão que nem merece ser analisada.
Se sim, Deus gostaria que a humanidade organizasse a sua estrutura de poder dessa forma? Porquê?
Aqui a discussão remeter-se-ia para o campo teológico. Se o Deus existente fosse “Alá”, seria fácil justificar a Teocracia pelo Corão, se o Deus existente fosse o da mitologia Cristã, então a teologia actual defende que a teocracia seria um erro contrário aos ensinamentos de Jesus.
Mas existe um problema: a ausência de acordo em relação à pergunta colocada (Deus existe?). A maioria da humanidade continua a acreditar em mitologias e superstições, e por mais que as provas concretas indiciem a ausência de qualquer Deus, o acordo em relação a esta matéria não ocorre. Como organizar o estado nesta situação? No caso dos países Islâmicos isto pode ser um problema muito complicado (pelos visto é mesmo!), já que grande parte da população insiste em acreditar que Maomet voou de burrinho de Mecca a Jerusalém numa noite e noutros “factos” do género… Nos países de tradição Cristã, pelo contrário, não há razão para confusões: a teologia cristã actual renega a ambição da Teocracia, e existe um acordo generalizado em relação à indesejabilidade desta.
MAS, e se a teologia Cristã renega essa ambição apenas como forma de se adaptar à ausência de possibilidade de acesso directo ao poder? E se teologia Cristã actual manifesta a sua aversão à teocracia apenas para melhor lidar com a popularidade generalizada dos valores democráticos? Eu, que não vejo nada de divino na inspiração dos teólogos actuais, posso partilhar essa opinião com os actuais Cristãos defensores da teocracia, mas as consequências desta opinião são muito diferentes:
-No meu caso, não vejo nada de divino nestas novas “directivas espirituais”, mas também não vi nas anteriores, nem na Bíblia. Acredito que a Teocracia (quer seja aplicada como no passado, quer mesmo de forma muito diferente) é indesejável para a sociedade, para um mundo desenvolvido, justo, racional e feliz, pelo que me é indiferente a legitimidade dos pretextos dos teólogos para defenderem a laicidade, desde que a defendam.
-No caso dos Cristãos defensores da teocracia, não basta considerar que o móbil das novas considerações dos teólogos é questionável. Isso não torna questionável as considerações (afirmá-lo seria uma falácia). Desta forma, terão de discutir as questões teológicas e encontrar na Bíblia a defesa da Teocracia. Uma vez que não acredito em Deus, seria muito curioso para mim observar tal debate: conjuntos de falácias, enganos e contradições a serem desferidos num bailado retórico acerca da mensagem do best-seller mundial. E a situação (muito bizarra) de ver com alegria os teólogos actuais esmagarem retoricamente alguma ideia (a da legitimidade da teocracia).