Fátima – alguns comentários de Dawkins, e outros meus
Já tinha considerado muito curioso, quando li Um mundo Infestado de Demónios, de Carl Sagan (um excelente livro sobre as alegadas visões de OVNIS extraterrestres, pseudociência, astrologia, etc…), o número de referências a “milagres passados”: situações em que povos antigos viam Deuses (Zeus, Osiris, Vénus, Thor) ou figuras mitológicas (Elfos, Unicórnios, Demónios) muito comparáveis aos modernos alegados “encontros de 3º grau”. Entre estas situações estavam os avistamentos da Virgem Maria principalmente ao longo da idade média, mas também nos tempos posteriores, e uma referência particular ao que se sucedeu em Fátima.
Ao ler o último livro editado em Português de Dawkins, Decompondo o Arco Íris (que é sobre o maravilhamento poético que a boa ciência pode proporcionar, e sobre a má divulgação, a armadilha do pós-modernismo, e a pseudo-ciência, astrologia, etc…), também encontrei uma referência a Fátima, o que indicia que essa ocorrência em território nacional é conhecida internacionalmente entre os meios mais eruditos e racionais como uma das maiores fraudes dos tempos modernos. (Faça-se justiça a alguns Católicos mais racionais que eles próprios duvidam publicamente da ocorrência desse milagre). A referência começa com uma citação de Hume:
”
“[…] Nenhum testemunho é suficiente para demonstrar um milagre, a menos que o testemunho seja de natureza tal que a sua falsidade seja mais milagrosa que o facto que pretende demonstrar” – Dos Milagres (1748)
Continuarei com esta ideia de Hume no que diz respeito a um dos milagres melhor atestados de todos os tempos, um que afirma ter sido presenciado por 70 000 pessoas e lembrado por algumas delas ainda vivas. Trata-se da aparição de N. Senhora de Fátima.
Vou citar um website católico que refere que, das muitas aparições da Virgem Maria, esta é rara porque é oficialmente reconhecida pelo Vaticano:
“A 13 de Outubro de 1917 estavam mais de 70 000 pessoas reunidas na Cova da Iria, em Fátima, Portugal. Tinham vindo presenciar um milagre que tinha sido anunciado pela Virgem Maria a três jovens visionários: Lúcia dos Santos e seus dois primos Jacinta e Francisco Marto […] Pouco depois do meio dia, a Nossa Senhora apareceu aos três visionários. Quando estava prestes a partir, apontou para o Sol. Lúcia repetiu emocionadamente o gesto e as pessoas olharam para o céu […] Depois, uma onda de terror varreu a multidão porque o Sol parecia romper-se dos céus e esmagar as pessoas horrorizadas […] Justamente quando parecia que a bola de fogo iria cair e destruí-los, o milagre parou e o Sol reassumiu o seu lugar normal, brilhando pacífico como nunca.”
Se o milagre do Sol em movimento tivesse sido observado apenas por Lúcia (a jovem que no fundo foi responsável pelo culto de Fátima), não haveria muita gente que o levasse a sério. Poderia facilmente ser uma alucinação individual, ou uma mentira com motivos óbvios. O que impressiona são as 70 000 testemunhas. Será que 70 000 pessoas podem ser simultaneamente vítimas da mesma alucinação? Ou conspirar numa mesma mentira? Ou, se nunca houve 70 000 pessoas, poderia o repórter do acidente safar-se ao inventar tanta gente?
Apliquemos o critério de Hume. Por um lado somos levados a acreditar numa alucinação em massa, num artifício de luz ou numa mentira colectiva envolvendo 70 000 pessoas. Isto é reconhecidamente improvável, mas é menos improvável do que a alternativa: que o Sol realmente se moveu. O Sol que estava sobre Fátima não era, afinal, um Sol privado: era o mesmo Sol que aquecia todos os milhões de pessoas no lado do planeta em que era dia. Se o Sol se moveu de facto, mas o acontecimento só foi visto pelas pessoas em Fátima, então teria de se ter dado um milagre ainda mais notável: teria de ter sido encenada uma ilusão de não-movimento para todos os milhões de testemunhas que não estavam em Fátima. E isso se ignorarmos o facto de que, se o Sol se tivesse realmente deslocado à velocidade referida, o sistema solar se teria desintegrado. Não temos alternativa senão a de seguir Hume, escolher a menos miraculosa das alternativas disponíveis, e concluir, contrariamente à doutrina oficial do Vaticano, que o milagre de Fátima nunca aconteceu.”
Se Dawkins conhecesse o milagre mais de perto (nós Portugueses temos essa oportunidade), ele saberia que HÁ pessoas (entre as alegadas 70 000) que estiveram lá e não presenciaram nada. Saberia igualmente que apesar da presença da imprensa, não há qualquer registo físico do milagre. Saberia que há contradições e histórias mal contadas referente à relação entre a doutrina do Estado Novo e a forma de como o milagre foi contado (o milagre ocorreu durante a primeira República, mas grande parte da divulgação ocorreu depois, e as versões anteriores diferem da versão mais conhecida).
Dawkins mostrou que MESMO que houvessem 70 000 pessoas a testemunhar o milagre, não faria sentido acreditar na sua ocorrência. Dawkins (tal como Sagan) não hesita em considerar Fátima um embuste. Nós, que sabemos melhor o que se passou, deveríamos hesitar muito menos.
PS- Já que, em grande parte, as alucinações em massa estão relacionadas com fenómeno do “Rei Nu” (em que todos diziam ver um fato, imaginando-o mesmo, por razões sociais, ou outras), seria de esperar que os relatos de milagres ocorressem principalmente entre os meios menos instruídos. Será que há uma correlação entre índices de analfabetismo e relatos de milagres? Aparentemente sim: a idade média correspondeu a um “pico de ignorância” na generalidade do povo, e mesmo a localização geográfica e temporal do milagre de Fátima parece confirmar esta tese.