Guerras justas
«justa bella ulciscuntur injurias» (Guerras justas vingam injúrias) Agostinho de Hipona
Muito se tem escrito nos últimos tempos sobre «guerras justas». Poucos saberão, porém, que a doutrina do bellum justum, da guerra justa, se fundamenta nas lucubrações sobre o assunto dos dois teólogos mais celebrados pelo anterior e actual Papas, os sempre inescapáveis Agostinho de Hipona e Tomás de Aquino. O termo, que desenvolve um conceito introduzido por Cícero, foi cunhado por Agostinho que qualifica como «guerra justa» aquela que obedece a um desígnio divino assim como justa é também a guerra que vinga injúrias ou pretende a restituição do que fora indevidamente tomado, embora recomendando que, mesmo justas, o homem sábio as encare com contrição e dor!
Assim, Agostinho admite que as guerras poderiam ser empreendidas pela vontade de Deus, para combater o «pecado», além de constituirem um privilégio dos governantes, como escreve no seu Contra Faustum (XXII, 75): «A ordem natural, que quer a paz entre os homens, exige que o poder de fazer a guerra seja reservado à autoridade pública». Tudo, claro, não deixando também de afirmar a prioridade ontológica da paz sobre a guerra, já que até Agostinho a doutrina cristã era eminentemente pacifista. Aliás um dos pontos de dissenção de Roma, com uma tradição de tolerância em relação a todas as religiões, residia exactamente na recusa dos primeiros cristãos em pegar em armas. Mas no tempo de Agostinho já o Império Romano era cristão e o seu Imperador um «legítimo» representante de Deus na terra que precisava urgentemente de mão de obra para os seus exércitos. Agostinho torneou a doutrina cristã existente para justificar as «guerras justas» que o seu Imperador católico precisava travar. A sua teologia bélica é apresentada essencialmente em «A Cidade de Deus» e no «Contra Faustum manichaeum».
O conceito da «guerra justa» foi refinado uns séculos depois por Tomás de Aquino, que refuta os argumentos contra as guerras, justas, claro, na sua Summa Theologica. Na Suma (II-II, 40, 1) indicam-se e explicam-se as três situações que legitimariam uma guerra: a autoridade do «príncipe», a justa causa e a intenção recta dos beligerantes.
Assim, a interpretação hoje em dia denominada de escotista ou franciscana, o estrito cumprimento do mandamento «não matarás», desde muito cedo que desapareceu do cristianismo. A corrente tomista sobre o tema, na qual se incluiu Agostinho, que dominou e domina a teologia da ICAR, especialmente desde o concílio de Trento, nos seus pressupostos metodológicos, afirma que Deus somente proibia a morte «injusta» de alguém, interpretando o mandamento como: «não matarás os inocentes». Assim é lícita a pena de morte, pois o direito à vida não é absoluto e existem muitas excepções. Como reiterado pelo finado Papa na Evangelium Vitae onde se pode ler, no meio de uma imensidão de platitudes e condenação do aborto, eutanásia e contracepção, que «a vida é sempre um bem» que «não se reduz à mera existência no tempo» já que «o homem que vive é glória de Deus», porém «a vida do homem consiste na visão de Deus» e assim «a vida na sua condição terrena não é um valor absoluto». O ponto 57 da maçadora encíclica resume a posição da ICAR sobre a inviolabilidade da vida humana: apenas condena «a eliminação directa de um ser humano inocente». Ou seja, o grande defensor de espermatozóides e óvulos dá o seu aval à eliminação directa de «culpados» e a «mortes colaterais», certamente das «guerras justas» aprovadas com o catecismo de 1997.