Equívocos, parte 13. A imagem de Deus.
Na sua série sobre os «Grandes equívocos do ateísmo contemporâneo», o Alfredo Dinis continua a insistir que o «Equívoco fundamental [do ateísmo] é […] estar estruturalmente impedido de conseguir os seus objectivos». Este uso do termo “equívoco” faz-me lembrar as sábias palavras de Inigo Montoya. O Alfredo insiste também na falsa dicotomia de que o ateísmo «ou tece críticas inteligentes […] à religião, e nesse caso só pode ser benéfico para ela; ou as suas críticas não são nem inteligentes, nem objectivas [e] não beliscam a religião.»(1) Omite a possibilidade mais importante, a do ateísmo desmascarar como infundada a confiança com que cada crente caracteriza o seu deus.
Neste episódio, o Alfredo Dinis aproveita novamente a ambiguidade da expressão “leitura literal” para induzir o equívoco de que os ateus estão «ao lado dos fundamentalistas cristãos que fazem uma leitura literal [da Bíblia]»(1). Consideremos o exemplo menos polémico do “Édipo Rei”, de Sófocles. Se por “leitura literal” se diz considerar todo o texto literalmente verdadeiro, então é óbvio que ninguém faz uma “leitura literal” desta peça dramática. É uma obra de ficção, baseada em lendas da época. Mas também não seria correcto ignorar o que lá está escrito e interpretar a obra como retratando a partilha de responsabilidade entre pais e filhos e a emancipação da mulher, fingindo que a morte de Laio e o incesto com Jocasta são apenas metáforas para o amor filial e a liberdade sexual. Ou qualquer outra coisa que se quisesse impor à leitura do texto. A intenção de Sófocles era que se lesse essa história como a tragédia que lá está descrita, e não como uma metáfora hippie sobre paz e amor.
É isto que os ateus fazem com a bíblia. O ateu não faz a “leitura literal” dos fundamentalistas. Eu não julgo que Deus tenha mesmo transformado a mulher de Lot num pilar de sal. Mas essa história não é uma metáfora para os perigos de comer sal em excesso, ou qualquer outra interpretação que agora possam dar-lhe para que Deus pareça mais bonzinho. É evidente que o autor queria transmitir literalmente o que escreveu: se desobedecem a Deus, por muito insignificante que seja a falta, ele lixa-vos com F grande. Principalmente às mulheres.
Segundo o Alfredo, «Dawkins e os demais autores do novo ateísmo ignoram que os diversos textos bíblicos foram redigidos em épocas, circunstâncias e culturas diferentes». Claro que não. Todos sabem que a Bíblia é uma selecção de histórias de muitos autores, com muitas ideias e prioridades diferentes. Se fosse tudo do mesmo, seria de esperar que Deus ou fosse o Kal-El ou o General Zod. Só essa diversidade explica que ora seja um ora seja o outro, conforme calha. Ao contrário do que o Alfredo defende, a divergência entre ateus como eu e crentes como ele não vem de julgarmos que a Bíblia é literalmente verdade nem de sermos ignorantes quanto à sua origem.
É precisamente pela diversidade cultural e ideológica dos seus autores que discordo do Alfredo quando afirma «que se deve ter em mente o sentido do conjunto dos textos bíblicos». Assumir um sentido conjunto para as histórias da Bíblia é que implica o erro de ignorar «que os diversos textos bíblicos foram redigidos em épocas, circunstâncias e culturas diferentes». Além disso, discordo também que «contextualização histórica e cultural» seja interpretar textos antigos de acordo com o que agora se considera aceitável numa religião, relegando para “metáfora” (de quê, nunca é claro) tudo o que pareça moralmente reprovável ou factualmente implausível, e retendo apenas o que for aceitável por critérios modernos. A «contextualização histórica e cultural» é precisamente o contrário. É ler Sófocles como Sófocles pretendia, e dar aos textos da Bíblia o significado que os seus respectivos autores lhes queriam dar.
Mas a divergência mais fundamental é outra, e resulta também de um equívoco. Escreve o Alfredo que «A imagem de Deus que os novos ateus recolhem da Bíblia baseia-se em passagens do Antigo Testamento nas quais Jahvé é descrito com traços vingativos e cruéis [… mas …] há que considerar que a imagem de Deus que se encontra na Bíblia é um conjunto de imagens sucessivas cujo pleno significado se atinge somente em Jesus Cristo.» Os ateus não “recolhem uma imagem de Deus”. Os ateus sabem que há muitas “imagens” de Deus. Os muçulmanos têm umas, os evangélicos outras, os budistas outras e até católicos como os meus avós têm uma “imagem” de Deus diferente da imagem que o Alfredo tem. Se assim não fosse eu não teria sido logo baptizado com medo que parasse no inferno por falta de bênção. O problema principal é não haver fundamento para qualquer destas “imagens” de Deus.
O Alfredo diz que o «pleno significado se atinge somente em Jesus Cristo», mas o peso das evidências não favorece essa hipótese sobre as do muçulmano, judeu ou budista. Mais importante ainda, se considerarmos o contexto em que surgiram as tradições religiosas e a diversidade das “imagens” de Deus, o mais plausível é que sejam apenas fruto da imaginação humana. Esta é uma hipótese crucial porque, se as religiões forem obras de ficção – como tudo indica serem – deixa de se justificar a teologia, o sacerdócio e o poder eclesiástico. A prestidigitação argumentativa acerca da definição de Deus, das interpretações da Bíblia e dos alegados equívocos dos ateus apenas serve para disfarçar a incapacidade de responderem à pergunta mais básica: como é que sabem que essa religião é verdadeira? Sem resposta para isto não há razão para dar crédito a qualquer “imagem” de Deus.
1- Alfredo Dinis, Grandes equívocos do ateísmo contemporâneo
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