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Desobediência civil

«Por definição, toda religião – toda fé – é intolerante, pois proclama uma verdade que não pode conviver pacificamente com outras que a negam.» Mario Vargas Llosa

A conferência Episcopal espanhola publicou ontem uma nota em que, se tal é possível, exponencia a rejeição da Igreja ao estado de direito, concretizada na reacção à lei que contempla a possibilidade de casamentos entre pessoas do mesmo sexo. De acordo com estes «peritos» em Direito esta não é uma «verdadeira lei» e exigem aos católicos que se oponham de forma «clara e incisiva» a esta lei iníqua.

Têm sido inúmeros os apelos da hierarquia católica à desobediência civil para, como diz o Bispo de Segorbe-Castellón, Juan Antonio Reig Pla, a actuação dos católicos não ir «contra a sua consciência rectamente formada». Reig Pla, afirmou ainda que um católico «tem que obedecer a Deus antes que aos homens, pois, de contrário, pode-se chegar a um Estado totalitário». O que me induz em dúvida sobre o que o ilustre prelado entende por totalitarismo, já que este é, por definição, o poder de uma doutrina, de uma ideologia, de uma «verdade» indiscutível. Ou seja, um estado democrático nunca pode ser totalitário mas as religiões são inerentemente totalitárias e intolerantes!

Já o Arcebispo de Génova, Cardeal Tarcisio Bertone, opinou que José Luis Zapatero, foi demasiado impulsivo no que considera ser o seu afã de «dar uma bofetada na Igreja» comparando algumas promessas eleitorais de Zapatero, sufragadas em eleições democráticas e livres, à «promessa de Herodes», aludindo à passagem mítica de Herodes e Salomé. «Depois de excitado pela dança da sua enteada (e sobrinha) Salomé, Herodes Antipas lhe disse: ‘peça-me o que quiser, que te darei’. E acrescentou sob juramento: ‘Dar-te-ei o que me pedires, embora seja metade de meu reino’». Do mesmo modo, «há governantes veleidosos que, a fim de arrecadar uns quantos votos, são capazes de dar de presente um reino que nem sequer lhes pertence. Não creio que, chegado o momento, estes governantes tenham incómodo em oferecer numa bandeja a cabeça da Igreja, para manter-se no trono». Certamente que este outro ilustre prelado prefere as monarquias teocráticas, como a dos reis católicos, ou o totalitarismo de Franco (posto no poder com o auxílio do Vaticano) que dominaram durante séculos a Espanha e que ofereceram à Igreja, sem quaisquer incómodos, as cabeças dos que ousaram contrariar os ditames desta.

Para além das habituais tácticas de vitimização que são lugar comum na actuação da Igreja de Roma, os últimos tempos têm sido palco de exibições de totalitarismo muito preocupante por parte da Igreja católica. Tentativas de recuperação do integrismo católico que se manifestam um pouco por todo o globo mas com especial visibilidade em Timor e em Espanha. Como o Diário Ateísta vem alertandomuitos meses a Igreja Católica encontra na conjuntura actual as condições necessárias para restaurar a antiga ordem, fundada no casamento (incestuoso) do poder político com o poder clerical. Com uma integração de todos os elementos da sociedade sob a hegemonia do «poder espiritual» representado, interpretado e proposto pela Igreja Católica, mais uma vez com o seu expoente máximo no Papa, não mais um primum inter pares.

Reitero as minhas expectativas já expressas de que a História recente nos tenha despertado da atitude complacente em relação às religiões e acordado para a ameaça latente que estas constituem para o modelo de sociedade que queremos construir, preconizado na Declaração Universal dos Direitos do Homem. Que ameaça ruir se não pusermos um freio aos ensejos totalitários e intolerantes das religiões, nomeadamente da Igreja de Roma, e se cedermos às chantagens sob a forma da desobediência civil, tão queridas aos Papas do século XXI, que se vão expectavelmente repetir onde o catolicismo é a religião dominante.

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