Loading

Equívocos, parte 11. A confusão da evolução.

O Alfredo Dinis considera que a incompatibilidade entre criação e evolução é um equívoco do ateísmo (1). No entanto, o equívoco é confundir a evolução com a teoria que a explica. O Alfredo começa por mencionar que a transferência genética na natureza não é unicamente vertical, de pais para filhos como Darwin propôs, mas também horizontal. Na verdade, de retrovírus e transposões à simbiose entre Bacteria e Archaea, há muitas complicações que Darwin desconhecia. Mas daqui afirma que vários autores ateus consideram que «Criação e evolução excluem-se reciprocamente» e que «O que podemos responder a esta tese é que a evolução se dá por um processo de interacção entre o acaso e a necessidade imposta pelas leis naturais». Isso não é uma resposta à tese. Isso é a tese.

A evolução é a variação que, ao longo das gerações, observamos na distribuição de características herdadas em populações. A hipótese de um criador omnipotente, que o Alfredo defende, é compatível com estes dados porque deuses omnipotentes dão para tudo e um par de botas. Sendo omnipotentes, tanto podem criar o mundo em seis dias como ir fazendo tudo em treze mil milhões de anos. Quaisquer que sejam os dados, a hipótese do Alfredo é compatível.

A incompatibilidade que existe é entre este relato do Alfredo e a teoria da evolução. Não os dados mas a explicação do processo. Estes relatos são incompatíveis entre si porque contam a história de forma contraditória. A biologia assume que não há inteligência nem objectivo na evolução porque só assim se pode deduzir a teoria da evolução que temos. Caso contrário, se assumirmos haver um plano e um deus omnipotente, nada se pode inferir porque um deus omnipotente pode fazer qualquer coisa.

O Alfredo assume que o ateu vê uma incompatibilidade entre os dados e a sua hipótese apenas por exigir que a criação divina seja um processo «unidireccional e contínuo, sem desvios nem recuos nem becos sem saída, e claramente racional e identificável pela ciência.» Refuta esta ideia contando como pode viajar, intencionalmente, de Braga a Lisboa, mas parando em Santarém para visitar um amigo e voltando a Fátima por se ter esquecido de uma coisa. Diz assim completar um percurso intencional guiado por «uma lógica não linear». Mas o problema não é esse.

Vamos imaginar que só sabemos que o Alfredo saiu de Braga, parou em Santarém, voltou a Fátima e acabou em Lisboa. Uma explicação possível é que o Alfredo queria ir a Lisboa mas lembrou-se de algo que tinha de fazer em Fátima depois de ter parado em Santarém. Outra hipótese é que estava apenas a passear, distraído e sem objectivo, e o percurso por Santarém, Fátima e Lisboa podia igualmente ter sido por Coimbra e Viseu. Apesar de ambas as hipóteses serem compatíveis com o percurso, são incompatíveis entre si. É contraditório defender que o Alfredo planeava ir a Lisboa e, ao mesmo tempo, que foi parar a Lisboa sem intenção prévia.

A evolução, o processo que observamos, é análoga ao percurso neste exemplo. São os dados. A hipótese do Alfredo é que um deus percorreu esse caminho de propósito. Pode ter tido mais ou menos aleatoriedade, mais ou menos intenção, mais ou menos revezes e becos sem saída, mas a hipótese do Alfredo é que quando a evolução começou esse deus já tinha em mente onde queria chegar. A teoria da evolução diz o contrário. Diz que não havia plano nem intenção, que a vida foi evoluindo ao sabor de cada momento, de cada mutação, de cada morte e cada nascimento.

A teoria da evolução dá uma margem apertada para o que, segundo ela, pode ter acontecido. E, até agora, tem acertado de forma notável. A hipótese do Alfredo é um fato de treino XXL, onde cabe qualquer coisa. Por isso, mesmo sendo ambas compatíveis com os dados que temos, justifica-se ter confiança na teoria da evolução mas não na hipótese do Alfredo porque esta seria compatível com quaisquer dados que surgissem. Mais importante ainda, estas explicações são mutuamente exclusivas, porque ou evoluímos de propósito ou não evoluímos de propósito. As duas coisas é que não pode ser.

No entanto, na boa tradição teológica, o Alfredo tenta escapar deste problema tornando a sua hipótese ainda mais vaga. O exemplo da viagem sugere um plano e propósito, mas o Alfredo explica a seguir como «compatibilizar criação e evolução por selecção natural» imaginando «uma infinidade de seres vivos […] em milhares de milhões de planetas em todo o universo, e que em cada um desses planetas o processo evolutivo tenha conduzido a formas de vida inteiramente diversas». Ou seja, evolução sem plano nem propósito em cada planeta. Só que, diz o Alfredo, «Deus seria ainda a condição de possibilidade e de inteligibilidade de todos os processos produtivos que se actualizariam no espaço e no tempo.»

Faz pouco sentido. A teoria da evolução descreve um processo que é possível mesmo sem deuses. Assim, para ser condição de possibilidade, o deus do Alfredo nem sequer precisa existir. Mesmo com um deus meramente fictício, a evolução é sempre possível. Quanto à inteligibilidade, essa vem das explicações. E é das explicações que a biologia nos dá, porque estas da teologia têm muito pouco de inteligível.

1- Alfredo Dinis, Décimo primeiro equívoco: a incompatibilidade entre criação e evolução

Em simultâneo no Que Treta!

Perfil de Autor

Website | + posts