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Previsões

No sentido comum do termo, uma previsão é acerca do futuro. Não se prevê o passado nem o presente. Mas em ciência esta palavra tem um sentido diferente que gera alguma confusão. A previsão científica é aquilo um modelo diz acerca do que se pode observar, quer venha ainda a ocorrer quer tenha ocorrido no passado. Por exemplo, podemos dizer que um modelo cosmológico prevê uma certa frequência de supernovas mesmo apesar das supernovas que observarmos já terem explodido há centenas ou milhares de milhões de anos.

Esta ideia de inferir de modelos aquilo que se vai observar foi um passo importante no conhecimento. Antigamente o saber era listas de factos, que já é alguma coisa mas tem uma utilidade limitada. Os egípcios aprenderam a construir pirâmides depois de vários fracassos, até acertarem nas proporções. Depois fizeram daquela maneira. Só nos últimos séculos é que se criou modelos que permitem prever se uma estrutura se aguentam antes de a construir. Unificar os dados num modelo capaz de explicar e dizer mais alguma coisa é muito melhor do que saber apenas o que já foi testado.

Isto é importante não só para poder usar os modelos como para detectar e corrigir erros. Se o modelo que concebemos é que os seres vivos foram criados por milagre, ou que o Diabo anda por aí a fazer maldades às escondidas, além de não nos dizer nada de útil podemos estar redondamente enganados e nunca o descobrir. É como passar a vida julgando-se perseguido por anões invisíveis.

E a previsão, neste sentido, separa radicalmente as religiões da filosofia e ciência. No sentido coloquial as religiões têm previsões. Aos molhos. O livro do Apocalipse, por exemplo, prevê uma data de coisas estranhas. Mas não são previsões no sentido científico, de inferências que partam de modelos testáveis. Essas as religiões evitam porque perceber não lhes serve; o que faz perdurar uma tradição religiosa é a memorização, a aceitação do “saber” autoritário e o mistério. Em 1950, Pio XII declarou que Maria tinha ascendido ao Céu de corpo e alma. Não porque este modelo do suposto acontecimento unifique dados e preveja correctamente o que se venha a observar, mas pela «autoridade de nosso Senhor Jesus Cristo, dos bem-aventurados apóstolos s. Pedro e s. Paulo»(1) e do Papa.

E muita gente acreditou.

Mas já uns séculos antes do filho do carpinteiro ter inspirado a moda uns gregos acharam que a sabedoria devia ser mais do que ir na cantiga dos sacerdotes. E começaram a formar ideias que lhes pudessem dizer alguma coisa testável acerca da realidade. O sucesso foi limitado, é verdade, e hoje em dia muitos consideram que a filosofia é mera especulação de sofá. Muita, infelizmente, até é. Mas, em parte, a classificação é injusta. No tempo de Demócrito ou Aristóteles não se conseguia perceber de que é feita a matéria ou porque as coisas caem. Faltava aprender muita coisa até que lá chegar. Mas eles tentaram. Tentaram dissecar o problema, compreender o que faltava saber e perceber como se pode discutir essas questões sem inventar autoridades ou ficar atolado em especulações vazias. E, séculos mais tarde, isso deu resultado.

O que prejudica a imagem da filosofia é que quando finalmente consegue criar modelos úteis passa a chamar-se ciência. Com o passar dos séculos, a filosofia mirrou do estudo de tudo ao estudo de umas poucas coisas problemáticas como a consciência, que ainda não sabemos onde encaixar na realidade, ou a ética, em que a realidade pouco ajuda*. Foi um enorme sucesso mas parece um fracasso.

As religiões ficaram de fora. De propósito. Ou fincam o pé em “factos” claramente contrários ao que se observa, como a Terra ter só uns milhares de anos e os fósseis terem sido depositados num dilúvio tão mágico que separou os grãos de pólen em estratos de acordo com a espécie de cada um. Ou se dedicam a especular sobre o que nunca se pode saber, como um outro mundo onde vive o Diabo, uma carrada de santos e a virgem Maria. Que ainda deve ser virgem, coitada, sendo única pessoa com corpo no meio de almas insubstanciais**. E ficam de fora porque as únicas previsões que fazem é que o mundo está quase a acabar – outra vez – e até isso inventam na altura.

* E uma carrada de tretas. Mas isso é inevitável quando não se tem forma de testar os modelos.
** A menos que lá apareça um bombista suicida. Estas coisas são um bocado confusas…

1- Vaticano, Definição do dogma da assunção de Nossa Senhora em corpo e alma ao Céu.

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