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Os valores de um ateu

O Ateu não crê em deuses, segue apenas a razão, não tem fé no que não vê. Por isto, dizem os crentes, não tem valores nem base para a moral. Mas os crentes que nisto crêem enganam-se. A crença muitas vezes engana, e é talvez a aceitação deste facto que mais distingue o Ateu do Crente.

A razão é uma ferramenta útil para processarmos observações. Tal como qualquer ferramenta, usada por si só, sem mais nada, não leva a lado algum. Disto são exemplos tentativas de crentes, de Tomás de Aquino a Descartes, de provar a existência de deuses com recurso apenas à razão. É martelar sem pregos… um exercício fútil pois a conclusão é função apenas dos axiomas em que decidimos acreditar à partida. Tomás de Aquino assumiu que tudo o que se move tem que ser movido por algo mais; com essa premissa, não é de estranhar que tenha concluído que tem que haver algo mais que aquilo que observamos mover-se.

A atitude de dúvida comum a muitos ateus não resulta em usar apenas a razão. Pelo contrário, leva-nos, ateus, a sujeitar a razão ao que observamos. Não tiramos os nossos axiomas do chapéu, nem assumimos verdades incontestáveis. Usamos a razão como ferramenta para compreender o que observamos.

E essa atitude de dúvida não leva ao vazio moral. É verdade que observamos que os valores são subjectivos. A subjectividade dos valores estéticos todos aceitam (de gustibus non est disputandum), mas a subjectividade dos valores éticos e morais é igualmente óbvia. O Crente vê apenas duas alternativas: ou acreditamos que os valores morais são ditados por Alguém a quem todos temos que obedecer, ou a moralidade passa a ser algo puramente subjectivo sem qualquer fundamento. Mais uma vez, o Crente engana-se: não só estas duas alternativas são a mesma coisa, mas há outra que lhe escapa.

Precisar de Alguém para fundamentar a nossa moral é o mesmo que dizer que a moralidade é subjectiva. É certo que o pecado de comer carne à Sexta-feira parece mais sério se resultar dum juízo divino que se provier dum momento de fraca inspiração dum membro do Clero. Mas nem por isso deixa de ser subjectivo; apenas se substitui um sujeito humano por um alegadamente divino. Se a moral fosse objectiva não precisávamos de um deus para decidir o que é bom e o que é mau, tal como não precisamos de fé para determinar a carga do electrão.

E isto não nos reduz à subjectividade pura. É que esta propriedade dos valores, de serem subjectivos, é uma propriedade objectiva. Independentemente da opinião de cada um, os valores são sempre subjectivos. Com isso podemos contar. E isso pode servir de fundação para a moral; serve para a minha, e acho que estou bem servido. Passo a explicar.

Como os valores são subjectivos, eu não defendo um conjunto de valores como bons rejeitando outros como maus. O que eu defendo são os valores de todos, e todos os valores. Por isso sou a favor da legalização do casamento de homossexuais. Não é uma opção que escolheria para mim, mas se duas pessoas têm valores diferentes dos meus e preferem esta opção, devem ter o direito a ela. Não é simplesmente por eu ou outros discordarmos que se deva priva-los do reconhecimento dos seus valores. Por outro lado sou contra a violação ou a tortura. O violador pode ter valores diferentes dos meus, e achar que está a fazer bem, mas se a vítima discorda os seus valores também contam. Ou seja, quando tomo uma decisão moral, em vez de perguntar o que este ou aquele deus prefeririam, pergunto o que será melhor para os seres envolvidos de acordo com os seus próprios valores. Seja deus ou mortal, valores são sempre subjectivos, por isso mais vale basearmo-nos nos valores dos que sofrem as consequências da decisão a tomar.

Proponho isto apenas como uma de muitas hipóteses para fundamentar uma moral sem recurso ao divino. Não é necessário que todos os ateus concordem com esta abordagem. Aliás, a minha moral está em conflito com a maioria dos ateus em alguns pontos. Um exemplo é o aborto. Se por um lado respeito o juízo de valores da mulher que não quer que aquele feto se transforme num bebé para amamentar, numa criança para educar, num adolescente para aturar e sustentar até finalmente sair de casa dos pais, por outro lado tenho também que considerar que todos esses estágios de desenvolvimento serão de grande valor ao ser que vai ser abortado. No caso da gravidez resultar dum acto sexual voluntário e de não haver riscos de saúde que justifiquem o aborto, sou moralmente contra esta prática. Nisto vejo como erradas as abordagens tanto dos que são contra por considerar a vida humana sagrada como os que são a favor da escolha por considerar que um feto não é uma pessoa: ambos cometem o erro de projectar os seus valores subjectivos nos dois seres mais directamente afectados por esta decisão.

Outro exemplo é a minha objecção moral ao consumo de carne de alguns animais. Acho que as vacas e os porcos, entre outros, sofrem demasiado na criação, transporte, e abate para que o meu gosto por bifes e costeletas justifique a minha participação nesta actividade. Por isso recuso-me a comprar estes produtos.

Em suma, não é verdade que a descrença no divino ou a aceitação da subjectividade dos valores negue a moralidade. Até considero bastante mais moral aquele que age de acordo com os seus princípios que aquele que se sujeita aos princípios de outrem por medo do castigo eterno. E não é verdade que negar a natureza sagrada da espécie humana nos obrigue a um comportamento animalesco e imoral. Pelo contrário, a compreensão que somos todos animais e que todos os organismos são parentes, descendentes de ancestrais comuns, obriga-nos a um respeito muito maior pela natureza da qual fazemos parte.

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