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Ciência e Cristianismo (1)


“A filosofia é a mãe da heresia; os filósofos são os patriarcas das heresias”
Tertuliano (160-220 EC)

Terá sido o Cristianismo fundamental para o desenvolvimento da ciência moderna? Dado que a curiosidade é intrínseca à condição humana e sine qua non na prossecução da ciência, seria razoável admitir que chegaríamos de qualquer maneira a alguma forma de ciência, mesmo num cenário hipotético que não incluísse o Cristianismo ou outra religião. Mas a verdade é que a Revolução Científica que deu origem à ciência tal como a conhecemos, só aconteceu na Europa dominada pelo Cristianismo do Sec. XVI, e não no mundo Islâmico, no Oriente ou noutro lugar do planeta. Um conjunto complexo de factores culturais e sociais concorreu para fazer surgir a mentalidade e as instituições necessárias ao florescimento da ciência. O Cristianismo pode ter sido um desses factores. Alguns autores defendem que foi a fé cristã num criador racional que deu origem à ideia de um mundo governado por leis fixas, igualmente racionais, quantitativas e ao alcance da compreensão humana. Mas na verdade esse conceito já era intrínseco a muita da filosofia dos panteístas e politeístas da Antiguidade. Além disso o Cristianismo não parece ter sido certamente condição suficiente para o aparecimento da ciência. Se o fosse a Revolução Científica teria acontecido mais cedo, algures no período de mil anos a contar desde o Sec. V, em que o Cristianismo passou a dominar o pensamento no Ocidente. Há ainda a constatação de a dita revolução não ter acontecido no também cristão, mas ortodoxo, Império Bizantino, o que nos leva a suspeitar que foram outros os factores de peso que criaram o ambiente propício para o despontar da ciência.
Por outro lado a história da filosofia e da ciência na Europa está marcada por uma série de episódios em que as autoridades religiosas procuraram censurar e reprimir o livre pensamento. Muita especulação teve de ser conduzida, durante séculos, com o cuidado de não contradizer a visão do cosmos prescrita pela Igreja Católica. Quem tentasse divulgar ideias que colocassem em causa os dogmas do Cristianismo via os seus escritos suprimidos e a sua carreira profissional terminada. Por vezes perdia mesmo a liberdade. Obras científicas foram banidas por longos períodos, impossibilitando outros estudiosos de lhes dar um possível seguimento. O medo da perseguição obrigou os intelectuais a recorrer a compromissos e a artifícios criativos que permitissem avançar as suas ideias sem com isso despoletar uma acusação de heresia. Neste ambiente persecutório muitos espíritos foram silenciados, sendo hoje impossível determinar quanto mais a ciência poderia ter avançado sem o medo da condenação de ideias consideradas heréticas.
É habitual dizer-se que o Cristianismo foi o principal motor de desenvolvimento da ciência na Europa e que todos os homens de ciência eram cristãos. Dá vontade de acrescentar que, além de cristãos, todos eles eram também homo sapiens, dado que no período em causa era difícil não pertencer simultaneamente às duas categorias.
Mas embora a afirmação acima seja verdadeira, ela é também enganadora. Primeiro, o estudo do mundo natural tinha de partir necessariamente destes homens, muitos deles clérigos, pois era a Igreja que detinha, maioritariamente, os meios para o fazer, o monopólio da literacia e do conhecimento. Depois, pelo menos até ao Sec. XVIII, a fronteira entre ciência e teologia era difusa, especialmente em assuntos cosmológicos ou outros que desafiassem a verdade literal da Bíblia. A motivação para investigar os segredos da natureza era quase sempre divina e se a Igreja promoveu a ciência nesta altura era porque tinha um interesse próprio no assunto – nomeadamente o de reforçar as suas doutrinas e a sua visão do cosmos. Durante muito tempo a ciência, ou melhor a filosofia natural como era então chamada, foi apenas aceite com o estatuto de serva da teologia.
Mas o mais importante na afirmação acima é que a “ciência” de que o Cristianismo foi o principal motor, não corresponde à ciência na visão moderna que temos dela. A Igreja nunca promoveu a ciência como actividade independente, de busca do conhecimento como um fim em si mesmo – no fundo, aquilo que é a essência do empreendimento filosófico tal como praticado pelos gregos da Antiguidade, e tal como o entendemos hoje. A ideia de perseguir desapaixonadamente as evidências até onde estas nos levarem – um credo absoluto e basilar de todo o edifício científico – era anátema para a Igreja. A Igreja apoiava uma versão muito própria de ciência com limites definidos: os limites impostos pelas suas doutrinas e escrituras sagradas. Foi esta a “ciência” que a Igreja apoiou e não a ciência genuína do cepticismo organizado e da razão que vemos hoje em acção.
Neste breve e despretensioso estudo vou defender aquilo que poderia apelidar de Tese do Abrandamento, a ideia de que houve momentos na história em que o Cristianismo se traduziu, efectivamente, num travão no desenvolvimento da ciência. Na próxima parte do artigo farei uma referência à reacção do Cristianismo primitivo perante a cultura pagã. Depois passarei a uma resenha de algumas instâncias mais conturbadas da relação histórica entre a ciência e o Cristianismo, salientando momentos chave em que o avanço do pensamento científico parece ter sido cerceado pela influência nefasta do Cristianismo.
EVM

Perfil de Autor

Universidade de Aveiro | + posts

Teve a sua fase de crente fervoroso na adolescência, mas o cepticismo levou a melhor. Defende que nada há de mais fascinante do que uma visão desmistificada do mundo. Amante das experiências ao ar livre, encontra toda a transcendência de que necessita na contemplação do mundo natural. Melómano desde que se conhece, vê a música como a arte suprema. Apaixonou-se desde cedo pela ciência e pela técnica, mas dedica hoje boa parte do tempo ao estudo do fenómeno religioso nas perspectivas histórica e filosófica.