Nem só de religião vive o ateu
O ateísmo, por si só e nos tempos que correm, não é nada de excitante. A ausência de alguma coisa não significa que haja um vazio a preencher. Ser-se ateu é apenas uma recusa em acreditar em deuses. Ora, posto isto a discussão acaba aqui. Não há uma mundividência ateia, um sistema ético ateu ou um modo de vida ateu. Este último no sentido em que o ateísmo não acrescenta, apenas retira. Não significa que o modo de vida de um ateu não seja rico e preenchido – por outros meios. Em suma, o ateísmo não é uma religião e não pretende oferecer nada além dessa ausência.
Para que eu seja ateia é necessário que exista religião e que ela seja prevalente. O ateísmo existe apenas como reação ao mundo infetado em que vivemos, tomado conta por um vírus existencial que recusa emancipar-se de um pai ultrapassado e senil que há muito devia ter deixado de ditar as regras lá em casa. Neste sentido, o ateísmo vive da religião porque na sua ausência seríamos apenas normais.
Não obstante esta luta entre acreditar e não acreditar numa ideia sobrenatural que pertence à infância da humanidade, nem só de religião vive esta ateia e, creio, outros ateus. Necessito de uma mundividência, de estabelecer valores éticos e um modo de vida. É o Humanismo Secular que preenche esse lugar onde recuso deixar entrar o dogma religioso e os sistemas arbitrários de falsa moralidade que as religiões oferecem. Se abraço assim a razão humana, a ética, a justiça social e o naturalismo, esta ateia vive também de política. Aliás, como ativista ateia, haverá pouco do que faço e vivo que não esteja imbuído desta coisa que se refere à vida em sociedade e a relação com o poder.
Neste sentido, é como humanista secular que hoje escrevo, além de enquanto ateia. Li ontem um artigo do Vatican News em que se dá conta de uma nota dos Dicastérios para a Doutrina da Fé (anteriormente chamados de Inquisição – sim essa) e para a Cultura e Educação em que “são destacadas as potencialidades e os desafios nos campos da educação, economia, trabalho, saúde, relações humanas e internacionais, bem como em contextos de guerra.”. À primeira vista não posso deixar de concordar que existem desafios. No entanto, basta continuar a ler para entender que o Sr. Jorge Mário tem umas ideias pouco originais sobre a IA, fruto de uma longa tradição católica de combater tudo o que é novo e que retire protagonismo ao seu modo de vida dogmático e redutor.
Nem tudo o que se diz na “Antiqua et Nova” é de deitar fora. Nem tudo, mas muito. Refiro-me à pressa em advertir os crentes que não endeusem a IA. Não que eu a queira endeusar, mas eu, pelo menos, não invento deuses para controlar grupos de pessoas. O Papa, vulgo Sr. Jorge Mário, tem receio do “Poder nas mãos de poucos”. A piada faz-se sozinha, claro. Preocupa-o (além da guerra que também me preocupa), a “antropomorfização da IA” gerando relações fraudulentas. Mais uma oportunidade perdida de um gracejo pouco simpático. No seu costumeiro ímpeto de controlar a sexualidade humana, o documento avança que “usar a IA para enganar em outros contextos – como na educação ou nas relações humanas, incluindo a esfera da sexualidade – é profundamente imoral e exige vigilância rigorosa”. Mas quem vigia a igreja que há séculos o faz?
O texto fala de preconceito e discriminação, de perdas no desenvolvimento do pensamento crítico, de fake news e deep fakes, de manipulação, informações falsas, enganos, de alimentar o ódio e a intolerância, da desvalorização da beleza e intimidade da sexualidade humana e da exploração dos fracos e indefesos. O Sr. Jorge Mário vai mais longe e critica o controlo da consciência humana pela IA, a vigilância do cidadão comum para proveito de outros, a exploração de recursos naturais para alimentar a IA, mas acima de tudo, alerta que a “presunção de substituir Deus por uma obra de suas próprias mãos é idolatria”.
Em suma, depois de listar tudo aquilo que tem feito nos últimos 2000 anos e que sente ser apanágio da ICAR, o Sr. Jorge Mário identifica o busílis da questão: a Igreja sente-se gradualmente substituída por uma imaginada IA maldosa (quiçá competitiva também neste campo com as atrocidades que a ICAR cometeu ao longo de séculos) e isso não dá jeito nenhum.
Por fim, um campo em que eu e o Sr. Jorge Mário concordamos:
Em particular, no âmbito do trabalho, destaca-se que, se por um lado a IA tem “potencial” para aumentar competências e produtividade ou criar novos empregos, por outro, pode “desqualificar os trabalhadores, submetê-los a uma vigilância automatizada e relegá-los a funções rígidas e repetitivas”, a ponto de “sufocar” toda capacidade inovadora. “Não se deve buscar substituir cada vez mais o trabalho humano pelo progresso tecnológico: ao fazê-lo, a humanidade prejudicaria a si mesma”.
Dizia eu há pouco que nem só de religião vive o ateu. Eu vivo deste Humanismo Secular que me auxilia a identificar-me como pessoa que luta pelo bem estar de todos, em sociedades dignas e dignificantes sem recurso a falsas promessas de castigo ou recompensa após a morte. Eu concordo com o Sr. Jorge Mário no que diz respeito à IA no campo do trabalho ainda que não corra o risco de a endeusar e a enfiar na ausência de religião a que o meu ateísmo obriga.
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Ao contrário do Sr. Jorge Mário, a minha solução proposta não é a fuga para um passado medieval de bruxas, demónios e fogueiras. Sugiro que todas as empresas que utilizem inteligência artificial ou outras tecnologias para substituir o trabalho humano sejam obrigadas a pagar impostos proporcionais aos encargos fiscais que teriam caso essas tarefas, funções ou postos de trabalho fossem ocupados por pessoas. Os valores arrecadados com este imposto teriam de ser direcionados para a criação de um rendimento básico universal, garantindo que os trabalhadores, em vez de serem simplesmente descartados, pudessem beneficiar dos avanços tecnológicos. Dessa forma, a automação não serviria apenas para maximizar os lucros dos CEOs à custa do desemprego em massa, mas sim para promover uma distribuição mais equitativa da riqueza gerada pela inovação. Ou seja, mais tempo para viver, com os meios para aproveitar esse tempo. Talvez o Sr. Jorge Mário devesse estar menos preocupado com a manutenção da imagem de infalibilidade da ICAR e da perda crescente de crentes (por consequência, do dinheiro que geram), e mais preocupado em realmente encontrar soluções para a sociedade em que vivemos. Nem só de pão vive o homem – dizem eles. É verdade, pessoalmente gosto de um bom Alvarinho e um queijo a acompanhar. E preferia ter como os pagar.
Perfil de Autor
Membro da Direção da Associação Ateísta Portuguesa. Autora do Podcast Portugal de Culto e do Podcast Homo SemDeus.
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DATE
29 de Janeiro, 2025 -
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