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Crer é um acto intelectual

Muito provavelmente a ideia de Deus (dos deuses) entrou em processo de depuração logo após a termos criado, por sentirmos que o caminho dos deuses, afinal, era uma vereda muito mais estreita do que a estrada que ambicionávamos pisar. Razões diversas estarão na base da motivação que nos levou à criação das divindades – que imaginávamos ter-nos oferecido o mundo, a vida e a felicidade eterna – e à eleição de um deus particular para cada momento dos dias que os deuses nos ofereceram para os cultuarmos. Começamos por criar um panteão onde colocamos os deuses da nossa invenção e, com o evoluir do pensamento,

destruímos o panteão e elegemos um único deus (um deus-single) para nos servir a todo o tempo e em cada situação de vida.

A ideia do divino é comum a todas as sociedades porque o Ser Humano é único e universal. Somos o mesmo ser em todas as latitudes e em todos os tempos, e as motivações que nos levam à adoração do que quer que seja, são universais; apenas modificadas por questões culturais de cada povo e em cada época.

Em todas as sociedades há um fundo comum embelezado com as crenças, às quais não é estranha a humana necessidade da introspecção, a inquietude do acaso, a fuga à solidão e às agruras da Natureza, e o sentimento da insegurança, acrescentando o medo da morte como “medo máximo” que eternamente nos consome.

O vencer do caminho que nos conduziu ao abandono de um panteão, pretensamente (mas também enganadoramente) protector de todos os males, e ao apuro de um único deus, acabará por dispensar, também, o deusJeová (Alá) – criado pelos Hebreus, reciclado por Jesus Cristo e adoptado (e adaptado) por Maomé – que sobrou da purga que o passar do tempo e o evoluir do pensamento promoveu no panteão que gregos e romanos herdaram da civilização mesopotâmica.

Na verdade antropológica, “deus habita em nós”. Isto é: existe no nosso pensamento… mas não passa de uma ideia, não se encontrando em mais lado algum fora da cabeça de quem crê. A crença num deus (ou em deuses e santos) é uma característica da nossa espécie de “Sapiens”, a qual nos diferencia de todos os outros animais nossos companheiros da vida na Terra.

Imagem gerada por IA

Porém devemos ter a consciência de que a crença é um acto intelectual. Aqueles ateus “em princípio de carreira” que vociferam contra tudo quanto “cheira a incenso”, se não tiverem essa consciência também não têm discurso que mereça ser ouvido. Se cremos, é porque sentimos que precisamos de crer; se criamos deus à nossa imagem e semelhança, foi porque sentimos necessidade de o fazer, já que o Homem só cria aquilo de que necessita. (A exploração social e económica que dessa ideia se faz, por uma elite exploradora de tal sentimento… é que já é outra conversa!…)

O sentimento da religiosidade é comum a todos os humanos independentemente das geografias em que se encontrem, e só está vedado aos restantes animais por não terem intelecto. Foi a nossa capacidade de raciocínio, a inteligência, a sensibilidade e o sentido estético, que nos levou à criação da Arte, ao entendimento do belo e à criação de deuses (que depois transformamos no Deus único).

Esta faceta criativa que nos caracteriza, faz de nós uns seres especiais. No entanto, quando em discordância com os nossos semelhantes, somos capazes de adoptar comportamentos iguais aos de um qualquer animal predador porque a nossa origem natural, enquanto animais, é a mesma!… 

Embora raciocinemos, deixamos, imensas vezes, a nossa sensibilidade tormentosa comandar-nos tomando conta da razão… e, por esse caminho, se bem virmos, até ficamos em patamares inferiores relativamente aos irracionais nossos companheiros de reino, porque enquanto que eles só guerreiam por alimento, por fêmea e pelo domínio do grupo, nós fazêmo-lo pelas mesmas três razões dos irracionais que consideramos inferiores… e ainda acrescentamos a lista, deixando-nos tomar por uma irracionalidade e uma cupidez que demonstram o pior da nossa condição animal, incluindo na lista das malfeitorias a crença em Deus quando a usamos como arma discriminatória e até mortífera (embora, ao mesmo tempo, o louvemos e lhe cantemos loas… o que sublinha a nossa imponente estupidez).

Isto parece-me incongruente com a capacidade que temos de raciocinar… mas a verdade é que nós somos assim… somos um produto natural ainda muito mal acabado!… (Espero que a evolução natural “lime as arestas” e nos melhore… mas isto, se calhar, também já é crença!).

Nós só erramos porque somos imensamente ignorantes… alguém disse que  “o erro é uma ignorância que se ignora”. A ignorância também é uma das nossas características. Todos nós somos ignorantes, até mesmo os sábios… que só o são no seu tempo e no seu ramo… e, mesmo assim, com limites.

(Por preguiça de aprender novas regras, o autor não obedece ao último Acordo Ortográfico. Basta-lhe o Português que lhe foi ensinado na Escola Primária por professores altamente qualificados)

Perfil de Autor

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Onofre Varela nasceu no Porto em 1944, estudou pintura e exerceu a atividade de desenhador gráfico em litografia e agências de publicidade, antes de abraçar a carreira de jornalista (na área do cartune), em 1970, no jornal O Primeiro de Janeiro. Colaborou com a RTP, desenhando em direto a informação meteorológica no programa Às Dez e animando espaços infantis. Foi caricaturista e ilustrador principal no Jornal de Notícias, onde também escreveu artigos de opinião, crónicas e entrevistas.