Loading

Da Religião e do Sequestro da Alma Humana

Gosto de pensar que fui aluno de Carl Sagan, embora isso seja algo que muitos outros como eu poderão também facilmente afirmar. Cresci a ler os seus livros, a ver os seus documentários — Cosmos, por exemplo —, e apaixonei-me, tal como tantos outros, pela beleza da ciência por causa dele.

Arrisco a dizer que Carl Sagan foi quem me mostrou pela primeira vez o que era o numinoso, o que significa, o que representa e quão importante é. Senti-o pela primeira vez com ele.

No seu livro Pale Blue Dot, o Carl Sagan oferece ao mundo uma reflexão profunda, inspirada por uma fotografia que ele mesmo propôs que fosse tirada pela sonda Voyager 1, em 1990.

À medida que a sonda se distanciava para além das gélidas fronteiras do nosso sistema solar, a câmara foi então ajustada para capturar uma imagem da Terra. O resultado foi uma fotografia que nos revelou não mais do que um minúsculo ponto azul claro na escuridão cósmica. Acredito que este gesto aparentemente simples tornou-se uma sinopse visivelmente crua da nossa fragilidade, e da nossa poética insignificância no panorama universal.

Olha novamente para aquele ponto. É aqui. É o nosso lar. Somos nós. Nele, todos aqueles que amas, todos os que conheces, todos aqueles de quem já ouviste falar, todos os seres humanos que alguma vez existiram, viveram as suas vidas. O agregado do nosso júbilo e sofrimento, milhares de religiões confiantes, ideologias e doutrinas económicas, todos os caçadores e recolectores, todos os heróis e cobardes, todos os criadores e destruidores de civilizações, todos os reis e camponeses, todos os jovens casais apaixonados, todas as mães e pais, crianças esperançosas, inventores e exploradores, todos os professores de moral, todos os políticos corruptos, todas as “superestrelas”, todos os “líderes supremos”, todos os santos e pecadores na história da nossa espécie viveram ali — num grão de pó suspenso num raio de sol.

A Terra é um palco muito pequeno numa vasta arena cósmica. Pensa nos rios de sangue derramados por todos aqueles generais e imperadores para que, em glória e triunfo, pudessem tornar-se os senhores momentâneos de uma fracção de um ponto. Pensa nas crueldades sem fim cometidas pelos habitantes de um canto deste píxel sobre os habitantes de algum outro canto, quão frequentes são os seus mal-entendidos, quão ávidos estão em matar-se uns aos outros, quão fervorosos são os seus ódios.

— Carl Sagan, Pale Blue Dot

Quando fui confrontado com esta incongruência entre o nosso solipsismo inato, e a ínfima impressão que deixamos no cosmos pela primeira vez, cresci.

Lembro-me do momento preciso, pois senti que esta discordância era um alerta valioso sobre a futilidade dos nossos conflitos terrenos, sobretudo quando ponderados à luz da escala incomensurável do universo. A revelação foi um momento de exaltação intelectual, um Eureka pessoal que potenciou e inspirou positivamente uma já irreversível e eterna viagem por mais conhecimento. 

Acredito não ser o único primata a ter sentido o mistério do transcendental, a ter experimentado algo maior que eu, mais importante e fantástico. Tenho a certeza disto.

Há mesmo momentos especiais nas nossas vidas em que o cosmos parece alinhar-se de forma quase mágica, e muitas vezes a nosso favor. Um breve instante em que a realidade deixa de ser o que parece e revela algo que ultrapassa o mundano e o habitual. Faz-nos sentir grandiosos, especiais, únicos, poderosos, extasiados, ansiosos, como tendo sido o melhor dia da nossa vida. O melhor evento, o quadro mais trágico, a canção mais lírica, o poema mais emocional, o livro mais bem escrito, etc.

Muitos, ao longo de milénios, têm interpretado estes vislumbres do transcendental como carícias divinas. Empurrões espirituais que levam muitos a percorrer caminhos ditos sagrados — seja pelo sacerdócio, pela conversão ao Islão, ao Hinduísmo, ao Judaísmo, ou por qualquer outra senda delineada pelo desonesto carimbo da religião.

E é precisamente aqui que a religião comete talvez a sua maior afronta: a audaciosa presunção de que apenas através dela, com os seus rituais, dogmas e insanidade em geral, é possível ao ser-humano experimentar o numinoso e sentir-se parte de algo maior e mais magnífico.

O transcendental, o numinoso, é aquela sensação que nos liga ao sublime, um grito trovadoresco que nos expõe a algo incrivelmente profundo. Desafia por vezes a lógica e leva-nos a confrontar uma realidade vasta em nuances e, por vezes, indescritível. E, ao contrário do que as religiões têm pregado há milénios, não são necessários mediadores, sacerdotes ou símbolos e rituais religiosos para o experienciar.

Este radar que temos para o detetar e sentir é intrínseco, uma parte essencial de todos nós, independentemente da fé — ou da ausência dela. Ao longo do tempo, a religião apoderou-se desta experiência profundamente humana da pior maneira possível. Ao sequestrar a nossa sensação de esplendor, a religião não só a conspurca continuamente e desde sempre, como também nos faz crer, de forma insidiosa, que apenas através das suas más ideias e práticas arcaicas poderíamos ter acesso a esta dimensão essencial da nossa existência.

Mas será que Michelangelo, o famoso pintor, ao criar as suas obras-primas sob a tutela financeira do Vaticano, estava realmente a expressar inspiração oriunda de fé fervorosa? Ou terá sido simplesmente a sua genialidade, a sua ligação natural ao numinoso, que brilhou apesar das imposições religiosas? Sabemos sequer se este artista era realmente devoto? Ou estaria ele apenas a tentar ganhar a vida?

A mente religiosa afirma ser impossível criar arte majestosa, música inspiradora ou escrever algo verdadeiramente belo e puro sem uma ligação íntima, e de forma altamente suspeita, com um ou mais deuses. Discordo.

Reivindicar algo tão humano como seu é nada menos que uma mentira, uma narrativa construída por homens prepotentes, cínicos, virgens e moralistas, para manter o seu domínio sobre as nossas vidas — aqui, no mundo real e mortal, onde conseguem verdadeiramente exercer o seu poder sobre as mentes mais incautas e controlá-las. Talvez seja esta a razão pela qual está tão profundamente enraizada na nossa psique colectiva, e tão difícil de erradicar ou domesticar.

Um ateu, um agnóstico, qualquer descrente, qualquer pessoa com cérebro e neurónios relativamente activos, tem tanta capacidade de sentir a beleza numinosa como qualquer devoto. A verdade é que esta manifesta-se de inúmeras formas que nada têm a ver com a institucionalização do sagrado.

Está presente na ciência que revela os mistérios do universo, na arte que expressa a profundidade e dificuldade da experiência humana, e nos actos de coragem e altruísmo que nos mostram o melhor da essência do ser humano.

A arte, a ciência, a exploração do desconhecido — todas estas são formas legítimas e poderosas de experienciar o numinoso, muitas vezes de forma mais pura e direta do que qualquer conjunto de regras ou dogma religioso permitiria. E, por conseguinte, com maior e melhor utilidade a curto e longo prazo.

Quando a religião — qualquer uma delas — afirma possuir o monopólio do transcendente, está apenas a tentar, de uma maneira extremamente venenosa, controlar a nossa relação com o mistério e a beleza do universo.

Acredito que chegou a hora de a resgatarmos, assim como a poesia da existência, das garras da religião, e de a reclamarmos como nossa, como parte da nossa herança humana universal.

O numinoso é livre.

Perfil de Autor

+ posts