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Pela Paz

Texto de Onofre Varela, previamente publicado na Gazeta

As convulsões sociais constituem sempre um excelente pretexto para os credos religiosos ditos defensores do bem contra o mal e da harmonia entre os povos (e nem todos eles têm estas características humanitárias), virem a terreiro deixar a sua palavra em defesa da paz e da concórdia. Assim fez o Papa Francisco há poucos dias, com a Europa mergulhada numa guerra desencadeada pelo ditador Putin que invadiu um país vizinho, matando e destruindo. 

Habitualmente as religiosas intenções moralizadoras são inoperantes, porque moral é coisa que o fazedor da guerra não tem, nem quer ter… nestas condições, não é o chefe de uma Igreja (que nem é a do ditador) que lhe vai refrear os instintos de poder e de domínio. 

O Papa Francisco consagrou, na passada Sexta-feira, a Rússia e a Ucrânia ao Imaculado Coração de Maria, numa celebração realizada em simultâneo no Vaticano e em Fátima. Acredito que para as mentes religiosas tenha sido um acto redentor e todos os que nele participaram se sintam de bem consigo na fraternidade que demonstraram sentir pelo Povo Ucraniano… mas acredito ainda muito mais que, em termos práticos, da vida real, da realidade que faz a guerra… tais actos redentores valem… zero! 

Não só neste momento de guerra na Ucrânia, mas também na nossa realidade política e económica de todos os dias, em momentos de convulsões sociais, às vezes os bispos juntam-se ao coro de protestos do povo sofredor, alertando o governo para práticas políticas ou económicas que, na óptica da Igreja, prejudicam o Povo. 

Muitos desses discursos soam a falso, porque são beatos e inoperantes (e também porque são proferidos em tempo de governo constituído por partidos de Esquerda que nem vão à missa!). Alguns dos discursos religiosos defendem interesses particulares do culto, como a condenação do aborto voluntário, do casamento homossexual e da prática da eutanásia por quem a deseja. Discursos que não são feitos com a mesma veemência em tempo de governos da Direita, quando estes destroem a classe média, estrangulam os trabalhadores com elevadas taxas de desemprego e vendem património público a interesses privados. 

Estou a lembrar-me de uma notícia divulgada pela imprensa espanhola há cerca de 20 anos, na qual se dava conta da mesma tendência de defesa dos interesses da Direita Política pela Igreja de Espanha, o que motivou uma tomada de posição da Associação de Teólogos e Teólogas João XXIII que, reunida em congresso em Madrid, se insurgiu contra o silêncio da hierarquia da Igreja Católica perante a crise, dizendo: “Não podeis servir a Deus e ao dinheiro”. 

O porta-voz deste recado dirigido aos bispos espanhóis foi José Antonio Pagola, que exerceu o cargo de vigário geral da diocese de San Sebastian e viu o seu último livro Jesus, Uma Aproximação Histórica, a ser investigado pela Inquisição Vaticana. O livro rapidamente se transformou em clandestino porque foi retirado do mercado por ordem da Igreja antes de ser esgotada a nona edição e já com 140.000 cópias vendidas em Espanha, no Brasil, em Itália, nos EUA e em toda a América Latina. “A hierarquia da Igreja não lidera os movimentos de conversão ao Evangelho” disse Pagola no seu discurso de encerramento do congresso. 

E continuou: “O governo está a mudar o país com medidas que atiram centenas de milhar de pessoas para a exclusão, e a Igreja não vê nenhuma revolução. Desde Jesus, não podemos ficar nem mudos nem conformados. A partir da Igreja temos que denunciar essa falta de compaixão. Os que sofrem não esperam doutrinas sociais nem justificações económicas tão mentirosas e imorais. Pedem que os defendamos. A hierarquia fala em nome dos que sofrem, mas não os leva no coração. […] O governo é despótico, anti-social e anti-cristão, e a hierarquia da Igreja está calada ou fala sem audácia evangélica. A voz dos sem voz não se ouve. Adoramos o crucificado, mas esquecemos os crucificados de hoje. Jesus atreveu-se a insultar os ricos do seu tempo”. 

A actual pregação da Fraternidade faz sentido nos conceitos religiosos e nas atitudes de alguns seguidores dos cultos, mas não resolve os problemas definitivamente. A verdadeira fraternidade, quando a nível de um país, pertence ao Estado concretizá-la com medidas sociais colectivas, na defesa da Paz e do bem-estar. O Homem é um ser fraterno e dado à fé… mas as atitudes de fé são inoperantes na resolução de problemas gigantes, principalmente quando o problema se chama Guerra! 

Aí… só se ouve a voz das armas. 

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico) 

 OV

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