Crentes, ateus e humor
Por Onofre Varela
Amos Oz foi um escritor israelita que nos deixou em 2018 contando 79 anos de idade. Era um defensor dos palestinianos e da paz que considerava dever existir entre Israel e Palestina. Uma voz discordante das relações azedadas entre os dois povos vizinhos, que não conseguiu fazer-se ouvir pelos (ir)responsáveis políticos que fazem a guerra em vez de construírem a paz. É dele a frase: “O sentido de humor é uma grande cura. Jamais vi, na minha vida, um fanático com sentido de humor”. Ao contrário dos fanáticos que militam numa qualquer religião, há ateus que alimentam um saudável sentido de humor (também os haverá sisudos!). Lembro que há mais de uma vintena de anos participei, em Coimbra, numa reunião preparatória para a legalização da Associação Ateísta Portuguesa. O evento aconteceu num hotel onde se encomendou um almoço para aquele grupo de ateus que se reunia pela primeira vez, sob o lema: “Vale mais o primeiro almoço do que a última ceia”.
Christopher Hitchens, escritor e jornalista britânico, autor do livro “deus não é Grande” (Dom Quixote, 2007), soube que, em consequência do cancro que lhe encurtava a vida, havia quem fizesse apostas na Net sobre se se converteria quando sentisse estar às portas da morte, e declarou com sarcasmo: “Se me converter é porque acho preferível que morra um crente do que um ateu”.
Voltaire, no seu leito de morte, teve à cabeceira um padre que pretendia convertê-lo para exibir a sua conversão como troféu. Ao aperceber-se da intenção do clérigo que queria ouvir o pensador a negar o diabo, Voltaire disse-lhe: “Não é o momento apropriado para criar inimigos”.
Também Jesus Cristo era um homem cheio de humor, embora o Novo Testamento não o afirme… mas também não diz que ele respirava!… O escritor espanhol Félix Caballero Wangüemert escreveu o livro “Jesús Humorista – Comicidad, Humorismo y Sátira en los Evangelios” (Madrid, 2019). O autor fez um estudo dos Evangelhos e escreveu 316 páginas, referindo o humor que neles encontrou. É evidente que para uma análise deste tipo o leitor tem de deixar a religiosidade no bengaleiro e ler o Evangelho com olhos de céptico.
Um bom exemplo do humor de Jesus pode ser aquela descrição da transformação de água em vinho na boda de Canaã na Galileia (João 2: 1-11), para a qual Jesus e os seus discípulos foram convidados. O vinho acabou-se antes de terminada a refeição, e Jesus mandou que enchessem seis talhas com água e a servissem como se fosse vinho. Quando o mestre-sala o provou, comentou: “Habitualmente é servido o melhor vinho em primeiro lugar, quando os convidados ainda estão capazes de o apreciar. Mas aqui guardaram o melhor para depois!”.
Conseguir um bom vinho usando no seu fabrico, apenas água, dispensando as melhores cepas… convenhamos que, não sendo truque de magia, só pode ser humor!
Tenham uma Boa Festa da Família em recato, resguardados do vírus que por aí anda. Abraço-vos.
(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico)
OV
Perfil de Autor
Onofre Varela nasceu no Porto em 1944, estudou pintura e exerceu a atividade de desenhador gráfico em litografia e agências de publicidade, antes de abraçar a carreira de jornalista (na área do cartune), em 1970, no jornal O Primeiro de Janeiro. Colaborou com a RTP, desenhando em direto a informação meteorológica no programa Às Dez e animando espaços infantis. Foi caricaturista e ilustrador principal no Jornal de Notícias, onde também escreveu artigos de opinião, crónicas e entrevistas.