4 de Julho, 2020 Carlos Esperança
Em nome da liberdade
As suscetibilidades pias são um episódio na escalada contra a laicidade. A substituição do direito divino pela soberania popular foi um passo para a democracia e uma grande deceção para o clero.
A liberdade é um bem escasso. Limitada pela opressão dos Estados, tolhida pelo medo individual e fanatismo religioso, precisa de quem a defenda contra tudo e contra todos.
A publicação de caricaturas de Maomé desatou, há anos, a ira do Islão e os desacatos, ameaças e violência do fascismo islâmico. Os cristãos opor-se-ão sempre ao escárnio do calvário de Cristo ou da virgindade de Maria, e a liberdade de expressão regressará ao escrutínio dos clérigos que ao longo dos séculos oprimiram a Humanidade.
Recordamo-nos do trauma das perseguições da inquisição, da celeuma do preservativo colocado em sítio menos óbvio – o nariz de João Paulo II –, pelo cartoonista António e do assassínio de um médico por um pastor evangélico, na sequência da prática de um aborto, nos EUA.
Temos o direito de caricaturar Deus, afirmou então, em França, o jornal France Soir, após a publicação dos desenhos de Maomé: «OUI, on a le droit de caricaturer Dieu».
Se nos deixarmos tolher pelo medo, não tarda que o poder seja de novo confiscado pelo clero, que sempre reivindicou procuração divina, e que sejam postos em causa direitos, liberdades e garantias arduamente conquistados ao longo dos séculos.
Dar publicidade aos testemunhos de irreverência, humor e heresia não é provocação aos crentes, é um ato de cidadania em defesa da liberdade de criação, uma ousadia contra a chantagem, uma advertência de quem resiste ao medo, à violência e às bombas.
Não faltarão cobardes a dizer que «deve haver um certo cuidado» e que «talvez não seja sensato». A pusilanimidade não conhece limites.
Defender o direito à blasfémia é um ato de solidariedade para com criadores artísticos, órgãos de comunicação que os acolhem e países que não se vergam à histeria da fé e ao fascismo religioso. É também a forma de homenagear Salman Rushdie cuja condenação à morte teve do Vaticano, do arcebispo de Cantuária e do Rabino Supremo de Israel uma posição favorável ao aiatola Khomeini quando, em piedosa demência, o condenou à morte, pelo abominável crime de…ter escrito um livro.
Se os crentes, de qualquer fé, por mais idiota que seja, entenderem caricaturar os ateus, apelidá-los de burros, idiotas e patetas, estão no seu direito. Todos temos de aprender a tolerar o direito de opinião dos que discordam de nós, por mais injustos e provocadores que sejam. O direito de expressão tem de estar acima do direito à repressão.
Quando o grotesco Califado com que gerações de jihadistas sonharam nasceu entre a Síria e o Iraque, e os facínoras da fé instauraram o Estado islâmico nos territórios que controlaram, não houve caricaturas e insultos que bastassem, urgia repor a salubridade nos territórios que as mesquitas e madraças ameaçaram tornar insalubres.
Mas a vitória não aconteceu ainda. E não há vitórias definitivas.