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A ICAR e a mulher

Este excerto que se segue, foi retirado do livro “As Damas do Séc. XII. A Eva e os Padres” da autoria de George Duby, historiador medievalista, especialista da época designada por Idade Média. Vamos ler!

(…).

“Convidar as mulheres, pelos menos as mais nobres, a confiar-se a um homem da Igreja era tratá-las como pessoas, capazes de se corrigirem.

Mas era também capturá-las.

A Igreja apanhava-as nas suas malhas.

No limiar do segundo milénio, na época em que Burchardo de Worms* trabalhou, deu-se na Europa um acontecimento de considerável importância. Que, ao modificar as relações entre o masculino e o feminino, marcou profundamente toda a cultura europeia e as suas repercussões ainda hoje não se dissiparam por completo. Instituição de longe a mais poderosa de todas, tanto mais forte quanto depurava o seu pessoal e se desligava de qualquer outro controlo, a Igreja decidiu colocar sob o seu rigoroso domínio a sexualidade. A Igreja estava então dominada pelo espírito monástico.

A maior parte dos seus dirigentes, e dos mais empreendedores, eram antigos monges.

Os monges julgavam-se anjos.

Pretendiam, como estes, não ter sexo e viam honra na sua virgindade, professando horror pela mácula sexual. A Igreja, por conseguinte, dividiu os homens em dois grupos. Aos servidores de Deus, proibiu o uso do seu sexo; permitiu-o aos outros, nas condições draconianas que decretou.

Restavam as mulheres, o perigo, uma vez que tudo girava em redor delas.

A Igreja decidiu subjugá-las.

Para tal, definiu claramente os pecados de que as mulheres, pela sua constituição, se tornam culpadas. No momento em que Burchardo compunha a lista destes pecados específicos, a autoridade eclesiástica acentuava o seu esforço para reger a instituição matrimonial. Impor uma moral do casamento,

governar a consciências das mulheres: um mesmo projecto, um mesmo combate.

Foi longo.

Acabou por transferir para os padres o poder dos pais de entregar as mãos das filhas a um genro e por interpor um confessor entre o marido e a sua esposa” (Duby, 1996:39-40).

“Os padres tinham que ajudar os pecadores a purgar-se inteiramente, portanto, submetê-los ao questionário, forçá-los à confissão. Assim que o penitente começava a reconhecer os seus pecados, seria bom atiçar nele a vergonha, instá-lo a ir mais longe, a examinar lucidamente o mais profundo da sua alma” (Duby, 1996:21).

“O «Decretum» apresenta-se como ferramenta indispensável de purificação geral. Dos vinte livros que o compõem, os cinco primeiros tratam do clero e dos sacramentos, que ele distribui, isto é, dos agentes deste saneamento necessário. Vem a seguir um catálogo exaustivo dos pecados que há para extirpar punindo-os conforme a sua gravidade” (Duby, 1996:20).

“Burchardo de Worms insta o padre a interrogar directamente as mulheres. Depois de ter enunciado cento e quarenta e oito perguntas, o «Medicus» avisa:

«Se as perguntas supracitadas são comuns às mulheres e aos homens, as seguintes destinam-se especialmente às mulheres»” (Duby, 1996:23).

Transcrevo a seguir algumas perguntas que estava instituído fazer às mulheres durante a confissão, segundo as orientações fornecidas pelo penitenciário Decretum, obra do bispo Burchardo de Worms, um dos “fabricantes” e perpetuadores do pecado e dos interditos.

“«Fizeste o que certas mulheres têm o costume de fazer, fabricaste uma certa máquina do tamanho que te convém, usaste-a no lugar do teu sexo ou de o de uma companheira e fornicaste com outras ruins mulheres ou outras contigo, com esse instrumento ou com outro?»;
«Fizeste como essas mulheres que «para extinguirem o desejo que as atormenta se juntam como se pudessem unir-se?»;
«Fornicaste com o teu menino, isto é, pousaste-o sobre o teu sexo imitando assim a fornicação?»;
«Ofereceste-te a um animal, provocaste-o para o coito com algum artifício?»;
«Provaste a semente do teu homem para que ele arda mais de amor por ti?»;
«Misturaste, para o mesmo fim, no que ele bebe, no que ele come, diabólicos e repugnantes afrodisíacos, peixinhos que puseste a marinar no teu interior, pão de massa batida sobre as tuas nádegas nuas, ou então um pouco de sangue dos teus mênstruos, ou ainda uma pitada de cinzas de um testículo torrado?»;
«Exerceste o proxenetismo, de ti ou de outras? Quero eu dizer, vendeste, como as putas, o teu corpo a amantes para que dele gozassem? Ou, o que é mais maldoso e culpado, o corpo de outra, quero dizer, a tua filha ou a tua neta, outra cristã? Alugaste-a? Alcovitaste?»;
«Fizeste o que certas mulheres têm o costume de fazer quando fornicaram e querem matar o que trazem? Actuam para expulsar o feto da matrix, seja com malefícios, seja com ervas? Assim matam e expulsam o feto ou, se ainda não conceberam, fazem o que for preciso para não conceber»;
«Foi por pobreza, por dificuldade em alimentar a criança, ou por fornicação e para esconder o pecado?»” (Duby, 1996:24-26).
“Por outro lado, e é a principal razão, o homem é a cabeça da mulher. É responsável pelos actos e pensamentos daquela que desposou. O que a vê fazer abertamente, o que a ouve dizer abertamente e que desagrada a Deus, é seu dever proibir-lho. E se outras mulheres da sua casa, as suas filhas, suas irmãs e até serventes da cozinha, repetem em coro os refrãos que a Igreja reprova, terá que, de cacete em riste, as calar. (…) O homem é o seu «dono e senhor». Elas estão à sua mercê e, ao longo de todo o Decreto, muitas referências aos textos conciliares reforçam este postulado. Cito duas. No livro XI, Burchardo transcreve os termos do juramento que o marido e a sua cônjuge eram chamados a prestar quando o bispo os reconciliasse.

O homem diz simplesmente:

«Tê-la-ei doravante como um marido segundo o direito deve ter a sua mulher, acarinhando-a na necessária disciplina; não me separarei dela e não tomarei outra enquanto ela viva».

A mulher fala durante mais tempo porque se compromete mais.

«Doravante tê-lo-ei e enlaçá-lo–ei e ser-lhe-ei submissa, obediente, no serviço, no amor e no temor, como segundo o direito deve a esposa ser sujeita ao marido. Não me separarei mais dele e, sendo ele vivo, não me ligarei a outro homem por casamento ou adultério»” (Duby, 1996:33-34).

Conclusão

“Do lado feminino, a servidão, a tremura, a vergonha; deste lado, e só deste lado, o adultério e as terríveis sanções que o castigavam” (Duby, 1996:34).

* Burchardo de Worms – Bispo de Worms, antes monge de Lobbes, elaborou o Decretum, “que mostra onde está o direito reunindo, classificando os «cânones», as decisões tomadas ao longo da história nos concílios, nas assembleias de bispos, e as prescrições contidas nesses livros chamados «penitenciários», porque indicavam, para cada pecado, a pena que haveria de resgatá-lo” (Duby, 1996:18-19).

Bibliografia

DUBY, Georges. (1996). As Damas do Séc. XII. 3 Eva e os Padres. Teorema. Lisboa.

Perfil de Autor

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- Ex-Presidente da Direcção da Associação Ateísta Portuguesa

- Sócio fundador da Associação República e laicidade;

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- Colunista do semanário «O Despertar» - Coimbra:

- Autor do livro «Pedras Soltas» e de diversos textos em jornais, revistas, brochuras e catálogos;

- Sócio N.º 1177 da Associação Portuguesa de Escritores

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