A Procissão da Senhora da Conceição (Crónica)
Para animar a fé e variar a liturgia eram frequentes as festas canónicas que esgotavam os ovos, o açúcar e a capacidade de endividamento das famílias na mercearia da aldeia.
A missa iniciava as festividades e prolongava-se com rituais de padres paramentados a rigor, vindos das paróquias vizinhas, e o sermão de um outro, contratado para enaltecer a santa e avivar a fé. O pregador subia ao púlpito e distinguia-se pela desenvoltura com que se exprimia, tanto mais apreciado quanto menos percebido, podendo confundir as virtudes e trocar os santos sem beliscar a fé ou pôr em risco os honorários.
Depois da missa, a procissão percorria as ruas da aldeia com uma ou outra colcha nas janelas e mantas de farrapos garridas, que era pobre a gente e a intenção é que a salvava.
À frente iam os pendões, empunhados por braços possantes que contrariavam o vento, seguidos de bandeiras com imagens pias e anjinhos, apeados, de asas derreadas. A seguir viajavam alinhados os andores do Sagrado Coração de Jesus e de alguns santos que aliviavam o mofo e o abandono na sacristia. No fim, vinha a estrela da companhia, a Senhora da Conceição, de virtude comprovada e milagres desconhecidos.
Os padres viajavam sob o pálio, conduzindo o arcipreste a custódia, que exibia a hóstia consagrada, com acólitos a empunhar as varas.
Em meados do século XX os cruzados gozavam ainda da estima de quem prevenia a salvação da alma e desconhecia a história das guerras religiosas. Assim, ladeando os andores, exultavam os garotos, meninos com uma faixa onde, a vermelho, se destacava a cruz e as meninas com uma touca que lhes escondia os cabelos e exibia uma cruz igual.
Depois dos padres e dos mordomos, orgulhosos dentro das opas, viajavam pelas ruas enlameadas as Irmandades. As Irmãs de Maria traziam o pescoço enfaixado com fitas azuis. Seguia-se a Irmandade do Sagrado Coração de Jesus com fitas vermelhas e, finalmente, as Almas do Purgatório com fitas roxas atrás de um estandarte que as anunciava, não fosse o Diabo tomá-las como suas.
A cobrir a retaguarda a banda da Parada do Coa atacava música sacra enquanto os foguetes estalejavam no ar. A passo lento, se o tempo convidava, ou mais apressados, se a chuva fustigava, os crentes regressavam à igreja com deserções antecipadas a caminho de casa onde as vitualhas aguardavam.
Eram assim as procissões da minha infância percorrendo as ruas tortuosas da aldeia e os retos caminhos da fé.
Publicada no JF em 12-10-2006
In Pedras Soltas – Ed. 2006 (esgotada)
Perfil de Autor
- Ex-Presidente da Direcção da Associação Ateísta Portuguesa
- Sócio fundador da Associação República e laicidade;
- Sócio da Associação 25 de Abril
- Vice-Presidente da Direcção da Delegação Centro da A25A;
- Sócio dos Bombeiros Voluntários de Almeida
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- Colaborador do Jornal do Fundão;
- Colunista do mensário de Almeida «Praça Alta»
- Colunista do semanário «O Despertar» - Coimbra:
- Autor do livro «Pedras Soltas» e de diversos textos em jornais, revistas, brochuras e catálogos;
- Sócio N.º 1177 da Associação Portuguesa de Escritores
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