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A escola e o presépio da minha infância – Crónica

Bem crucificado e suavemente chagado, numa cruz de madeira dependurada na parede, penava um Cristo de bronze em resignada agonia, ladeado à direita por uma fotografia de um homem de bigode, fardado, conhecido por marechal Carmona, e à esquerda por um eterno seminarista, com ar de gato-pingado, que infundia terror – o Professor Salazar. Na mesma parede, em frente dos alunos, a razoável distância e muitos fungos depois, quedava-se a Senhora de Fátima, poisada numa mísula, alheada da conversão da Rússia e da salvação do mundo. Mais abaixo, à esquerda, ficava o quadro preto e o mapa do corpo humano e, à direita, rasgados, um mapa de Portugal Continental, outro das Ilhas Adjacentes e das Colónias e o mapa-múndi.

O soalho resistia aos buracos, numerosos e amplos, que a humidade e o uso se encarregavam de alargar. As carteiras alinhavam-se em rigorosa geometria com lugares destinados a cerca de quarenta garotos de ambos os sexos distribuídos pela primeira, segunda e quarta classes. Entre quinze a vinte estavam na sala oposta a frequentar a terceira, confiados à senhora Noémia, regente escolar.

Nos dias de chuva subvertia-se a ordem, na complexa gincana de carteiras, para evitar que os pingos de água que escorriam do teto acertassem nos tinteiros e salpicassem de azul a roupa das crianças e os tampos de madeira.

No intervalo, meninos e meninas, em amplas correrias e direções opostas, procuravam os quintais próximos para se aliviarem dos fluidos que os apoquentavam.

À entrada da escola o presépio anunciava todos os anos o Natal. Na armação de tábuas e pedras cobertas de musgos, um menino de barro, seminu e de perna alçada, jazia em decúbito dorsal sobre uma caminha de palha centeeira. Era o Menino Jesus. De um lado uma virgem colorida, moderadamente recatada e com pouco uso, substituía a que se partira, interessada na companhia do filho que herdara. Do outro, um S. José, a quem a corrosão deixara em pior estado do que o dogma da Imaculada Conceição, parecia um erro de casting, indiferente ao especto, perdidas as cores, diluídas as formas, conformado com os olhares e as súplicas, incapaz de operar milagres, resignado com o frio de Dezembro.

O burro e a vaca comportavam-se a preceito, facilmente se adivinhando o gosto por erva se eles e esta fossem verdadeiros.

Os reis magos, eternos almocreves com ar de ladrões de camelos, virados para uma estrela recortada em papel colorido, permaneciam imóveis na lendária caminhada, quais amoladores de tesouras, à espera de fregueses para ganharem o sustento e um presente para o Menino.

As ovelhas que placidamente decoravam a montanha eram figurantes experientes, desinteressadas da importância que acrescentavam ao quadro e do exemplo de submissão que transmitiam. Nem um só carneiro as acompanhava, talvez para lembrar que é na renúncia ao prazer que se encontra a redenção da alma. Apenas um cão e o pastor.

Reflito hoje sobre a predileção por musgos, muitos musgos, para cobrir o chão do presépio. Na religião tudo se deve cobrir ou, no mínimo, disfarçar. Talvez esteja na ocultação dos órgãos de reprodução, característica das plantas criptogâmicas, a razão da preferência, a funcionar como metáfora.

Perfil de Autor

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- Ex-Presidente da Direcção da Associação Ateísta Portuguesa

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- Colunista do semanário «O Despertar» - Coimbra:

- Autor do livro «Pedras Soltas» e de diversos textos em jornais, revistas, brochuras e catálogos;

- Sócio N.º 1177 da Associação Portuguesa de Escritores

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