Texto divulgado por Alfredo Barroso
SOBRE ORGIAS NO VATICANO E OUTRAS “PEQUENAS FESTANÇAS”
– por François Reynaert (*)
Nos momentos difíceis, é preciso saber encontrar o apaziguamento no longo rio da História. Consideremos então o “fait divers” proveniente de Roma que veio apimentar o início do Verão [de 2017]: chamada por vizinhos já exasperados por uma incessante barulheira, a polícia italiana irrompeu, no final de Junho [de 2017], por um prédio situado no Vaticano, acabando por descobrir o que foi descrito como uma “orgia gay”. Com eclesiásticos, “go-go boys” e cocaína à tripa-forra. Acontece, por outro lado, que a residência em questão pertence à piedosa Congregação para a Doutrina da Fé e que o organizador da “pequena festança” era o secretário particular de um dos cardeais mais importantes da Cúria, e estava em vias de se tornar bispo. Este prelado, que terá certamente de esperar um pouco mais antes de obter a promoção, foi encontrado num estado tal que justificou o seu internamento urgente para efectuar uma cura de desintoxicação. Não são muitos os detalhes sobre o caso – o que se lamenta. Mas não se duvida que vai causar mais preocupação ao Papa e a alguns católicos mais aflitos.
Como convencê-los a não ficarem assim tão preocupados com este caso? Antes de mais, contrariamente ao que a Imprensa se apressou a repetir em contínuo, este caso nada tem de um “novo escândalo sexual” a abater-se sobre a Igreja. Recordemos que os últimos escândalos que vieram à baila foram atrozes histórias de pedofilia. O “fait divers” de Junho [de 2017] tem a ver com adultos que sabiam perfeitamente o que estavam a fazer. A História poderá ser, também, de grande ajuda para relativizar os desvios de comportamento que agora foram descobertos. No que se refere a “desordens contra natura”, como dantes se dizia, o trono de São Pedro já viu muitas outras.
Confessemos, todavia, que a tradição específica de que se está a falar não é fácil de apreender, porque se mistura frequentemente com outras tradições. No século X, por exemplo, durante um período mais tarde baptizado como da “pornocracia pontifícia” (904-963), Roma está sob o domínio duma poderosa família que impele os Papas a todos os excessos, para fazer deles os seus fantoches. Mas parece que as rédeas da Igreja estavam sobretudo nas mãos das cortesãs, o que nos afasta do nosso tema. O famoso grande cisma do Ocidente (1378-1417), esse período em que o trono de São Pedro, dividido entre Avinhão e Roma, é disputado por dois Papas e às tantas por três, oferece-nos igualmente um momento propício. Mas também aqui os excessos que nos interessam são submergidos por outros. Assim, o Antipapa João XXIII, posto em julgamento pelo Concílio de Constança, é acusado de ter praticado a sodomia com monjes – um clássico – mas também de outras “preciosidades”, entre as quais a violação de mais de 300 monjas, de modo já não se sabe a que diabo nos devemos confiar.
Faustosa sob todos os pontos de vista, a Roma pontifícia da Renascença é a das grandiosidades artísticas – basílica de São Pedro, capela Sistina, Miguel Ângelo, Rafael, Bramante e toda essa parafernália – mas também a de outras proezas. Alexandre VI (1492-1503), um dos dois Papas Bórgia, orienta-nos para uma falsa pista. Obcecado em provocar a perda do belo Astorre Manfredi, que lhe recusara a sua moradia de Faenza, diz-se que o terá violado antes de o mandar lançar ao rio Tibre. Mas é uma acusação sujeita a caução. Uma outra das sua proezas, devidamente confirmada por um prelado alsaciano em serviço no Vaticano, é digna de fé mas claramente heterossexual: em 31 de Outubro de 1501, mandou vir 50 prostitutas para as proporcionar à sua corte, submetendo-a a uma espécie de concurso de virilidade, arbitrado pelos seus próprios filhos, os célebres César e Lucrécia Bórgia.
Em matéria de vício italiano, como se dizia nessa época, mais vale recorrermos ao Papa Sisto IV (1471-1484), que passava por escolher os seus cardeais exclusivamente por critérios físicos. Ou ao Papa Júlio III (1550-1555), cujo primeiro acto que praticou, logo que a tiara pousou na sua augusta fronte, foi nomear cardeal o seu jovem favorito, de 17 anos de idade, do qual nunca se separava, nem mesmo para dormir. Com tal golpe, o detalhe causou escândalo. A época tornou-se mais dura. Entretanto, aconteceu o cisma da Reforma, cujo mundo protestante festejou meio milénio [em 2017]. Contrariamente ao que por vezes se escreve, Lutero não rompeu com Roma por causa dos deboches que ele viu multiplicarem-se durante uma viagem que fez em 1510. O grande escândalo, a seus olhos, era a venda das indulgências, isto é, a possibilidade que os cristãos tinham de comprar a sua salvação a troco de dinheiro, comércio que foi relançado por Leão X (1513-1521) para financiar a edificação da basílica de São Pedro. Assim sendo, uma vez consumada a ruptura, os ataques vindos dos luteranos e, sobretudo, dos muito puritanos calvinistas, contra « a nova Babilónia» ou «a grande prostituta romana», terão quase sempre o seu alvo abaixo da cintura. Roma sente que é preciso impor a calma nesse lado. Após o concílio de Trento, Pio V (1566-1572) decreta o fim da recriação e impõe aos seus palácios e ao seu clero um estilo asceta. Aqueles que querem continuar a divertir-se deverão fazê-lo com discrição…
(*) Texto publicado no semanário francês “L’OBS” em 3 de Agosto de 2017
Perfil de Autor
- Ex-Presidente da Direcção da Associação Ateísta Portuguesa
- Sócio fundador da Associação República e laicidade;
- Sócio da Associação 25 de Abril
- Vice-Presidente da Direcção da Delegação Centro da A25A;
- Sócio dos Bombeiros Voluntários de Almeida
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- Colaborador do Jornal do Fundão;
- Colunista do mensário de Almeida «Praça Alta»
- Colunista do semanário «O Despertar» - Coimbra:
- Autor do livro «Pedras Soltas» e de diversos textos em jornais, revistas, brochuras e catálogos;
- Sócio N.º 1177 da Associação Portuguesa de Escritores
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