7 de Agosto, 2015 Carlos Esperança
As multinacionais da fé
Deus é uma perigosa ficção que conquistou, no início, gente primária e supersticiosa. Umas vezes extinguiu-se rapidamente, outras fez uma carreira gloriosa até atingir as classes poderosas que o confiscaram e transformaram em instrumento do seu próprio poder.
Se escasseiam os sócios, Deus dá origem a uma seita. Quando se reproduz e esmaga a concorrência, combate os indiferentes e passa a religião. Então, cria-se uma hierarquia, impõem-se regras, organizam-se as finanças e reduz-se a escrito a tradição oral sob os auspícios de um iluminado a quem Deus dita um livro, normalmente num sítio ermo.
As religiões do livro já foram a sofrida aspiração de quem tinha o medo e a fome como horizonte. O Paraíso tornou-se o bálsamo para o desespero, a aspiração inconsciente de uma sociedade sem classes, o desejo de pobres e infelizes se tornarem iguais aos ricos e poderosos, renunciando à luta.
A correlação de forças impôs em cada lugar a hegemonia de uma religião e definiu qual era, ali, o Deus. O Deus único e verdadeiro é o Deus de quem detém o poder, onde outro qualquer é pertença de quem não preza a vida. Muitas vezes foi expulsa a concorrência, com brutalidade e inaudita crueldade.
Foi então que se deu o salto dialético. A ficção institucionalizou-se, a vontade de Deus sobrepôs-se à dos Homens, a fé venceu a razão, o medo impediu o pensamento.
As religiões dividiram o mundo, de acordo com a sorte das armas, e nunca renunciaram ao proselitismo que impusesse o seu deus ao crentes doutro deus e, sobretudo, aos ateus. A distribuição de religiões tem áreas privativas e zonas de influência demarcadas que a globalização pôs em causa. Demolido o equilíbrio, acossadas pelo medo, algumas religiões entraram em histeria. Há o fantasma da extinção e do domínio de uma só.
O cristianismo, apoiado na cultura judaico-cristã, no poder económico e na força militar, partiu em vantagem para o ajuste de contas com o islão fanático. A ICAR pressentiu o perigo de o Vaticano se reduzir a um museu, subalternizado pelos protestantes, e tem tentado a fusão das várias correntes cristãs sob a hegemonia papal.
No seu proselitismo à escala planetária veio à tona o antissemitismo secular, o pasmo pela fé islâmica, a sedução pela intolerância e o fascínio pelo fanatismo, a acordar na ICAR a memória das Cruzadas e o entusiasmo do Santo Ofício, ora mitigado pelo papa de turno.
O próprio Opus Dei, uma espécie de braço armado do Vaticano, por ora sem recorrer ao terrorismo armado, não hostiliza o islão, com quem partilha ideias ultrarreacionárias, e recuperou o medo de uma alegada conspiração judaico-maçónica, a quem atribui, em delírio, a responsabilidade pelo agnosticismo, a laicidade e o ateísmo.
O Vaticano faz pressão para impor anacrónicas conceções aos Governos e ONGs e aguarda que se decida a correlação de forças para se empenhar na batalha final.
Cabe aos livres-pensadores impedir que as religiões sepultem a liberdade e corroam as democracias. A laicidade não é só uma exigência moral é uma questão de sobrevivência da democracia.