17 de Maio, 2015 Carlos Esperança
Fátima: a enganar pessoas desde 1917 (TM)
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1- Três crianças de Los Angeles dizem ter visto um thethanluminoso através da penumbra de poluição da cidade norte-americana. Segundo a Cientologia, um thethan é uma das almas que, há 75 mil milhões de anos, foram atiradas para os vulcões do planeta Terra por um ditador intergaláctico. O thethan em questão apareceu num ferro-velho, prometendo que, caso fossem ali no dia 13 de cada mês, as crianças receberiam a revelação de segredos. No lugar do ferro-velho, a igreja da Cientologia prepara-se para construir um santuário.
2- Apesar de, em 1917, Portugal estar sob a vaga anticlerical da Primeira República, era, com toda a certeza, um país mais dado a misticismos do que é hoje. No entanto, no Século Cómico, de 14 de outubro desse ano, escrevia-se: “Conservamos [os portugueses] a nossa habitual indiferença, como se a aparição da mãe de Jesus Cristo fosse para nós a coisa mais natural d”este mundo. Vimos passar para a charneca centos, milhares talvez, de peregrinos, crentes, curiosos, amadores de picnics, vendedores de água fresca e capilé, repórteres e vendedores de vinho a retalho.”
Quase cem anos mais tarde, partilho o espanto do Século Cómico com a nossa falta de espanto. Porque será que a história (inventada por mim) das três crianças de Los Angeles, ou os preceitos da Cientologia, nos motivam descrença, se não mesmo uma risada, enquanto as conversas mantidas entre a Virgem e os pastorinhos nos parecem mais fiáveis?
Por que razão extraordinária os visitaria? Segundo Lúcia, Nossa Senhora explicou o motivo do contacto: “Quero dizer-te que façam aqui uma capela em Minha honra, que sou a Senhora do Rosário, que continuem sempre a rezar o terço todos os dias.” Obediente, Francisco, um dos pastorinhos, terá recusado estudar por penitência e isolava-se para mitigar os pecados dos outros.
3- Após as aparições, criou-se no país uma exaltação espiritual – e uma oportunidade para combater o laicismo da Primeira República -, que se propagou através da “Cruzada do Rosário”. A iniciativa, com milhares de seguidores, consistia em rezar o terço, comungar ao domingo, orar pelo sucesso da cruzada e ter em casa uma imagem de Nossa Senhora. Segundo o historiador católico Costa Brochado, foi assim que começou o Mês de Maria: “Os ímpios tinham motivos para supor a Igreja derreada (…) eis que ela se ergue mais forte e bela do que nunca, lançando-se à reconquista da cristandade com a arma singular do Terço.”
Fátima foi, inicialmente, uma ação de propaganda de intelectuais católicos, encavalitados na fé do povo ignorante. Não é preciso ser psicólogo ou vidente para perceber que aquilo que Lúcia diz ter visto e ouvido – “sobretudo, aceitai e suportai com submissão o sofrimento que o Senhor vos enviar” – é um reflexo da forma como aquelas crianças, naquele Portugal, viviam a religião – um deus que ralha e castiga e exige.
4- Segundo um documento escrito por Lúcia, em 1941, os dois primeiros segredos eram: 1) A revelação do inferno – “Nossa Senhora mostrou-nos um grande mar de fogo, que parecia estar debaixo da terra.” 2) A obrigatoriedade da adoração – “Deus quer estabelecer no mundo a devoção ao meu Imaculado Coração” – e a conversão da URSS: “Virei pedir a consagração da Rússia.” Ou seja, a ameaça do castigo eterno e a cruzada contra o comunismo (porque não contra o fascismo ou o nazismo ou os padres que abusaram de crianças na Irlanda?)
O terceiro segredo, revelado em 2000, mostra como Fátima parece um filme de série B, de enredo frágil e com um final insatisfatório. Lúcia terá visto a imagem de um homem vestido de branco, sob a ameaça de uma espada, o que levou o Vaticano a decretar que se tratava de uma antevisão do atentado ao Papa João Paulo II – “foi uma mão materna que guiou a trajetória da bala”.
Tanto barulho por nada. Uma “autoprofecia”. Não fosse a dimensão do logro e o número de gente enganada, Fátima seria uma comédia. No entanto, a narrativa dos segredos assemelha-se mais ao Antigo Testamento – a ideia de um deus egocêntrico, sedento de atenção, que ameaça com o inferno e exige a construção de um templo em sua homenagem. Mas porque não uma mensagem verdadeiramente reveladora e inédita para a humanidade, porquê a construção de uma capela em vez de um orfanato, o medo do inferno em vez da prática do bem?
O terceiro segredo aproxima a Igreja de um canal de televisão que se alimenta do próprio star system. Como um ator promovendo a telenovela num programa da manhã, o Vaticano decidiu que – apesar de todas as calamidades e guerras que aconteceram no século XX – a Virgem estava preocupada com o Papa. A igreja umbiguista, muito mais do que ecuménica.
Perante tudo isto, os fiéis de Fátima dirão, tal e qual os crentes em thethans, “é o mistério da fé. Não se questiona a fé”, como se fossem crianças, que pastavam o gado, na Cova da Iria, em 1917.