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Quem não tem dinheiro não tem vícios (Crónica)

A herança judaico-cristã, exacerbada pelo calvinismo e protestantismo evangélico, não deixou apenas complexos de culpa e de pecado, impôs-nos, como axiomas, aforismos falsos e cruéis.

A conduta da União Europeia em relação à Grécia, movida mais por razões de ordem ideológica do que racional, trouxe-me à memória colegas com quem convivi ao longo de três décadas.

Pernoitávamos nos mesmos hotéis, juntávamo-nos e jantávamos em bons restaurantes onde, depois da refeição, ficávamos a conversar e a filosofar num fraterno convívio de amigos, onde os mais novos estimavam ouvir os mais velhos, talvez por generosidade, sempre com bonomia.

Não esqueço a simpatia que me prodigalizaram os mais novos à medida que passei a ser dos mais velhos. A muitos ainda os encontro, outros sumiram-se da vida ou da vista e os que descubro dão-me notícia de desempregados, apanhados nas curvas da vida. Não são os que partiram que ora me preocupam, são os que andam por aí aos baldões da sorte.

Descobri alguns a iniciar negócios onde arriscaram o subsídio de desemprego e algumas poupanças, na esperança de um novo recomeço, para desaparecerem depois do fracasso. Lembro-me deles nos locais onde deixaram as últimas ilusões, não deixaram morada nem se despediram, esconderam-se decerto.

A outros ainda os vou encontrando, falam-me de envios de currículos, das dificuldades acrescidas pela idade e falta de empregos, mas esperam melhores dias, como se fosse eu a precisar de consolo, querendo mostrar que não desistem.

Encontro os que, durante o desemprego, se divorciaram e perderam a casa e os filhos, os que têm alguns recursos de que vivem com um módico de dignidade e aqueles que estão desesperados. Um, pediu o subsídio de desemprego da Segurança Social e o negócio ruinoso deixou-o num quarto alugado onde passou fome e juntou rendas por pagar até que uma instituição de caridade lhe valeu. É celibatário, há muito que deixei de o ver.

Outro, fui-o encontrando a dizer que esperava novo emprego e, mais tarde, a vaguear com ar de abandono. Acabou a arrumar carros num parque onde várias vezes deixou o seu, relembro os esgares a que o sorriso deu lugar, perdidos os incisivos do maxilar superior, a evitar-me pela vergonha e pelo odor, salvo quando o apanhava no torpor de viagens que os químicos induzem. Abalou. No meu círculo ninguém sabe dele.

Afinal, quem não tem dinheiro, tem vícios.

(Publicada no Jornal do Fundão, ontem)

Perfil de Autor

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- Ex-Presidente da Direcção da Associação Ateísta Portuguesa

- Sócio fundador da Associação República e laicidade;

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- Vice-Presidente da Direcção da Delegação Centro da A25A;

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- Colaborador do Jornal do Fundão;

- Colunista do mensário de Almeida «Praça Alta»

- Colunista do semanário «O Despertar» - Coimbra:

- Autor do livro «Pedras Soltas» e de diversos textos em jornais, revistas, brochuras e catálogos;

- Sócio N.º 1177 da Associação Portuguesa de Escritores

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