O sermão, o sacristão e a ressurreição de Lázaro
(Crónica pia para ímpios – 8215 carateres)
Estava chuvoso aquele domingo em que tinha lugar o sermão anual da Ressurreição de Lázaro, sempre renovado pelo padre Jerónimo, relatado na Bíblia Sagrada (João 11:1-46) e esperado pelos paroquianos, extasiados com o prodígio, sem precisar de recorrer aos capítulos e versículos de Mateus e Lucas, só para referir evangelhos canónicos.
Desfaziam-se em lágrimas os fregueses da aldeia, quando o pároco falava da doença de Lázaro que todos confundiam com o leproso homónimo, da parábola do Rico e Lázaro. Era como se lhes tivesse morrido um irmão ou o pai, tal a comoção, sempre prontos a desfazerem-se em pranto com as dores passadas dos diletos do seu Deus.
O padre Jerónimo explorava bem a amizade de Maria e Marta, irmãs de Lázaro, com o Mestre, sobretudo de Maria, que ungiu os pés do Senhor com perfume e lhos enxugou com os seus cabelos, sem malícia nem assepsia.
Jesus tinha já vasta experiência de milagres, apesar do ceticismo de outros judeus que tinham dos galileus os preconceitos que os americanos têm dos polacos e os portugueses dos alentejanos, mas a ressurreição, sendo prodígio insólito, valia mais pelo respeito que infundia nos outros judeus, para que cressem nele, do que pelo milagre em si, truque que resultara na ressurreição do filho da viúva de Naim e na da filha de Jairo. Com um milagre daqueles, muitos judeus, creram em Jesus o que levou a que «Naquele momento houve alegria nos céus em função dos pecadores arrependidos (Lc 15:10) num golpe de publicidade para consumo judaico.
E assim Jesus tentava convencer os outros judeus da missão que sonhava, uma tentativa frustrada, pois foram os romanos a crerem nele e a perseguirem-lhe os conterrâneos por não acreditarem que santos da terra fizessem milagres, como soe ainda hoje acontecer.
Estamo-nos a desviar da homilia que o padre Jerónimo, com paramentos arredondados sobre o abdómen, imaculados na brancura, sem as nódoas da batina, destinava a manter a fé, a clientela e a côngrua.
O padre lera no Evangelho de João, que as irmãs avisaram a Jesus que Lázaro estava doente e precisando de ajuda, mas, quando recebeu a notícia, ainda demorou dois dias no lugar onde estava. Só depois disse: «Vamos outra vez para a Judeia», apesar de os discípulos o tentarem dissuadir de regressar a Betânia, lugar onde já o tinham tentado apedrejar, naquela região pelam-se por lapidações, mas era aí que Lázaro jazia.
Com a demora, Lázaro estava há quatro dias sepultado quando chegaram e Jesus disse: «Lázaro morreu; e Eu, por amor de vós, estou contente por não ter estado lá, para assim poderdes crer. Mas vamos ter com ele.» Tomé, chamado Gémeo, disse aos outros: «Vamos nós também, para morrermos com Ele», referindo-se a Jesus e não a Lázaro.
Maria, para evitar sorrisos ambíguos ou por razões que os evangelistas omitiram, ficou em casa e foi Marta que disse a Jesus que se ele estivesse ali não teria morrido o irmão, mas Jesus insiste que seu irmão irá retornar e afirma: «Eu sou a ressurreição e a vida. O que crê em mim, ainda que esteja morto, viverá; e todo o que vive e crê em mim, nunca jamais morrerá; crês isto»? (João 11:25-26).
Marta, aturdida pela dor e pela fé, disse logo: «Senhor, eu creio que Tu és o Cristo, o Filho de Deus que havia de vir ao mundo». A seguir correu para casa a chamar Maria e disse-lhe em voz baixa – percebe-se –, «está cá o Mestre e chama por ti». Maria – diz João –, levantou-se rapidamente e foi ter com Ele, Jesus, que ainda não tinha entrado na aldeia e ficou no lugar onde Marta fora ao seu encontro. E disse ainda que os judeus que estavam com Maria, em casa, para lhe darem os pêsames, ao verem-na levantar-se e sair à pressa, seguiram-na, julgando que se dirigia ao túmulo para aí chorar. Quando Maria encontrou Jesus, mal o viu, caiu-lhe aos pés e disse-lhe: «Senhor, se Tu cá estivesses, o meu irmão não teria morrido». Ao vê-la chorar, e aos judeus que a acompanhavam, o choro e o riso são contagiosos, Jesus suspirou profundamente e comoveu-se. Depois, perguntou: «Onde o pusestes»? Responderam-lhe: «Senhor, vem e verás». Jesus fazia milagres mas não adivinhava o lugar da sepultura.
Então Jesus começou a chorar e os judeus diziam: «Vede como era seu amigo»! Mas alguns deles murmuravam: «Então, este que deu a vista ao cego não podia também ter feito com que Lázaro não morresse»? Já então havia quem preferisse a conservação da saúde ao milagre da cura.
O padre Jerónimo sabia de cor o que vou escrever. Jesus, suspirando, foi até ao túmulo, uma gruta fechada com uma pedra, e disse: «Tirai a pedra». Marta, a irmã do defunto, disse-lhe, «Senhor, já cheira mal, pois já é o quarto dia» e Jesus replicou-lhe: «Eu não te disse que, se creres, verás a glória de Deus»? Quando tiraram a pedra, Jesus, erguendo os olhos ao céu, disse: «Pai, dou-te graças por me teres atendido. Eu já sabia que sempre me atendes, mas Eu disse isto por causa da gente que me rodeia, para que venham a crer que Tu me enviaste». Sem publicidade não há milagres, Deus ou religião.
Depois de ter criado desassossego nos presentes, bradou com voz forte, que os mortos ouvem mal: «Lázaro, vem cá para fora»! e aquele que estava morto saiu de mãos e pés atados com ligaduras e o rosto envolvido num sudário. Jesus disse-lhes: «Desligai-o e deixai-o andar». E ele andou, para que o milagre fosse obrado.
Os evangelistas não explicam como um morto sai, donde quer que seja, de mãos e pés atados mas isso são dúvidas de incréu, cogitações ateístas que conduzem às profundezas dos Infernos, abençoados os que creem sem ver.
O padre Jerónimo soia comover as lajes da igreja, isto é força de expressão do cronista, e posto os paroquianos a chorar baba e ranho com tão belo milagre, tamanho prodígio e tão convincente prova da bondade e presença divinas. Mas o padre Jerónimo soube que são insondáveis os desígnios do seu Deus. Acordou afónico nesse domingo, quiçá por ter sido fria a noite ou a afilhada, bela morena de 22 primaveras, ter esquecido a botija ou ainda, a fazer fé em boatos, por se ter destapado demasiado durante a noite.
Impossibilitado de fazer a homilia, de acrescentar à parenética mais uma peça pia, quis que o sacristão contasse a situação e dissesse ele as palavras sem as quais a missa perde sentido. Quis o devoto escusar-se, por não ter experiência, por vergonha, com medo de se enganar e, a cada desculpa, o padre, num sussurro mal humorado perguntava-lhe se não sabia de cor o sermão, que sim; se não confiava que, estando ele, padre, ao lado, lhe balbuciaria as palavras certas, à menor hesitação, que sim; se queria obedecer-lhe, que sim, sim; e lá convenceu o Serafim, mais habituado a estender a bandeja ao óbolo dos crentes do que a falar da virtude e dos milagres de Deus.
Dadas as explicações aos paroquianos, tartamudeando, com o padre Jerónimo a acenar, com um sorriso magoado, o Serafim, sacristão por propensão e pelas gorjetas, limpou a garganta e começou a substituir o pregador. Até nos ademanes se estreou bem, abrindo os braços num gesto largo, quais asas que o conduzissem ao céu, e começou: «Queridos irmãos em Nosso Senhor Jesus Cristo, naquele tempo estava Jesus em Jerusalém, a uma légua de Betânia onde Maria e Marta faziam luto, de quatro dias de defunção de Lázaro, e esperavam a chegada de Jesus, amigo da família.
Aí o padre franziu o sobrolho, porque o sermão se afastava do seu ou porque Jerusalém não fosse a cidade onde o Mestre se encontrava, mas a distância coincidia. Sussurrou-lhe algumas palavras e o sacristão continuou.
É inútil repetir a homilia que em todas as paróquias era recitada com ligeiras diferenças da encenação que os padres faziam no seminário. Os leitores recordarão a substância do milagre, já referido, e cabe ao cronista dar apenas testemunho da parte final do sermão que coube ao sacristão, por ser inédito.
Sacristão – Estavam as irmãs de Lázaro chorosas quando chegou o Mestre e lhe pediram para o fazer regressar à vida. Jesus disse para o levarem junto da sepultura e elas assim fizeram. O Mestre chegou e gritou: «Lázaro, anda cá para fora e anda. E ele andeu».
Padre – (voz quase inaudível) …andou, estúpido.
Sacristão – …andou estúpido algum tempo e, depois, curou-se.
Carlos Esperança – 27-11-2014
Perfil de Autor
- Ex-Presidente da Direcção da Associação Ateísta Portuguesa
- Sócio fundador da Associação República e laicidade;
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- Colaborador do Jornal do Fundão;
- Colunista do mensário de Almeida «Praça Alta»
- Colunista do semanário «O Despertar» - Coimbra:
- Autor do livro «Pedras Soltas» e de diversos textos em jornais, revistas, brochuras e catálogos;
- Sócio N.º 1177 da Associação Portuguesa de Escritores
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