Treta da semana (passada): a careca é uma cor de cabelo.
A crítica de Rui Ramos ao ateísmo de Stephen Hawking segue a fórmula do costume. Primeiro, se Hawking «acredita que Deus não existe» então, tal como o crente em Deus, tem «fé, embora diversa – a fé na inexistência de Deus.» Depois, que chegou à sua conclusão da mesma forma que o crente: «A questão é determinar de que modo, entre a fé em Deus e a fé na inexistência de Deus, Hawking passa de uma margem para a outra. A sua ponte não é o cepticismo, mas a ciência, ou melhor, uma variante muito especial da experiência científica, que funciona de facto como o equivalente laico da fé religiosa.» Finalmente, que a atitude de Hawking para com a ciência é igual à de qualquer crente. «Hawking sente pela ciência a devoção que qualquer beato dispensa ao seu todo-poderoso ídolo»(1).
Esta forma de criticar o ateísmo sempre me pareceu estranha pela admissão implícita de que a crença em Deus é estapafúrdia. Não é que discorde. Concordo inteiramente que é um disparate formar crenças acerca da realidade por meio da fé e da devoção beata. Mas é estranho julgarem que a falta de fundamento epistémico da crença religiosa é um bom argumento contra o ateísmo. No entanto, mais interessante é perceber porque é que as alegações de Ramos são falsas.
A fé não é o mesmo que a crença. Acreditar é simplesmente aceitar uma proposição como verdadeira enquanto que a fé é um compromisso pessoal de fidelidade e perseverança para com certas ideias (2). É perfeitamente possível acreditar sem fé. Eu acredito que Deus não existe da mesma forma como acredito que a Terra se formou há 4.5 mil milhões de anos, sem sentir qualquer dever de fidelidade para com estas proposições. E é também possível ter fé sem ter crença se a fidelidade a uma ideia não bastar para que se consiga acreditar. A confusão de Ramos entre fé e crença atropela a diferença entre a devoção do crente aos princípios da sua religião e a forma descomprometida como todos regularmente adoptamos e descartamos crenças conforme julgamos conveniente.
O contexto destas crenças também é diferente. A ciência procura a melhor explicação para os dados de que se dispõe. É verdade que isto só resulta se houver dados suficientes e, por isso, a ciência só começou a ter sucesso nos últimos séculos; sem saber nada sobre decaimento radioactivo, a erosão ou a formação do sistema solar não havia razões para acreditar que a Terra tinha 4.5 mil milhões de anos em vez de só dez mil. Mas, com o que sabemos agora, a melhor explicação fica tão entalada na estrutura interligada de observações e outras explicações que, a menos de uma pequena margem de erro, só o valor de 4.5 mil milhões de anos pode ser aceite.
A crença de que um deus inteligente e bondoso criou a Terra por milagre não sofre destas restrições. Em geral, os preceitos de cada religião são arbitrários e podiam ser qualquer coisa. Se criou tudo por milagre, tanto podia ter criado o universo há treze mil milhões de anos como podia ter criado tudo há dez mil anos em sete dias ou em sete minutos na sexta-feira passada. Milagre por milagre, também podia ter criado os fósseis, os vestígios de erosão e até as memórias que cada um de nós tem. Sem qualquer suporte empírico, só a fé leva o crente a decidir que a sua crença é mais acertada do que as dos outros.
O processo também é muito diferente. A ciência não é um «equivalente laico da fé religiosa». A ciência progride explorando e testando alternativas. É este processo de rejeitar o que se revela incorrecto que vai apertando o cerco às explicações admissíveis, deixando cada vez menos elementos arbitrários. Nas religiões, o primeiro passo consiste em afirmar algo como Verdade. E pronto. O resto é teólogos a inventar desculpas para as inconsistências e arbitrariedade da escolha inicial (3). É verdade, como menciona Ramos, que houve «séculos de meditação e de debate» acerca de Deus e outros deuses. Mas o debate e a meditação são inúteis se não se está disposto a descartar as hipóteses erradas.
Hoje é evidente que os deuses são mera ficção porque qualquer coisa que se tente explicar invocando um deus explica-se melhor rejeitando esse deus como fantasia, desde a formação das galáxias e a origem das espécies à existência do mal e a diversidade das religiões. Também não é a «pobreza da […] concepção de Deus» que faz diferença porque, por muito “rica” que seja, é uma concepção arbitrária, infundada e inútil para explicar seja para o que for. A ciência eliminou os deuses de todas as explicações para o universo que nos rodeia. Sobraram apenas as alegações que os crentes mantêm por fé. Mas, antes de nos metermos pela metafísica da existência dos deuses na premissa de que estas alegações correspondem à realidade, devemos primeiro determinar se é preciso deuses para explicar a fé dos crentes. Também aqui a ciência responde pela negativa. Há evidências claras de que é muito fácil aos seres humanos agarrarem-se a superstições e que a intensidade desse apego não é indicador fiável da verdade das crenças.
Não é preciso idolatrar a ciência para perceber que a fé não serve para compreender a realidade. É precisamente isso que Ramos argumenta contra Hawking, errando apenas por presumir que a posição de Hawking deriva da fé. Mas não é preciso fé para concluir que os deuses são tão fictícios quanto os unicórnios, os fantasmas e os dragões. Basta fazer o puzzle com as peças que encaixam.
1- Rui Ramos, O deus de Stephen Hawking
2- Catholic Encyclopedia, Faith.
3- A propósito disto, recomendo esta palestra de David Deutsch na TED: A new way to explain explanation
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