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O problema da indiferença.

Os teólogos chamam-lhe o problema filosófico do mal. O termo é enganador porque o problema a que se refere não está no mal em si. Está na hipótese de existir um ser infinitamente bondoso que tudo sabe e tudo pode. É essa hipótese que claramente não encaixa no que observamos. Mas como nas religiões não fica bem admitir erros, muita gente se tem dedicado, durante milénios, à tarefa fútil de arranjar desculpas para que um deus infinitamente bondoso permita tanta desgraça. Neste momento, a racionalização mais popular parece ser é a de que o mal existe porque Deus respeita a vontade de cada um e a liberdade é incompatível com a garantia de que só há bem e não há mal*.

Mesmo restringindo o problema ao mal – actos intencionais da vontade humana – esta justificação é inconsistente com o que observamos nos conflitos entre vontades diferentes. Se A tem vontade de fazer mal a B e B tem muita vontade de que não lhe façam mal, o que determina o resultado não é a justiça nem o respeito por quem tem mais vontade. É simplesmente a força física ou a arma mais eficaz. O que as evidências demonstram é que os deuses, se algum existir, respeitam mais a Kalashnikov do que a vontade livre de cada um.

No entanto, o problema é muito mais vasto do que o mal enquanto acto com intenção. Todos os anos morrem mais de seis milhões de crianças pequenas, de até cinco anos de idade. Morrem principalmente de pneumonia, complicações na gravidez, asfixia durante o parto, diarreia e malária (1). Não morrem por alguém ter desejado que morressem. Não é a maldade que as mata. São bactérias e protozoários, falta de alimentos e termos evoluído bípedes de crânio grande a partir de antepassados quadrúpedes, resultando na passagem de um feto cabeçudo por dentro de uma pélvis que tem de ser estreita para a mãe conseguir andar. As tragédias que ocorrem sem qualquer intenção, maldade ou culpa, como doenças e acidentes, são muito mais numerosas do que aquelas que se pode atribuir a um mal intencional. Seja como for, perante qualquer tragédia, a Natureza comporta-se exactamente como se não fosse governada com bondade, inteligência ou vontade. Para o universo, morrer o filho nos braços da mãe é o mesmo que cair uma gota de chuva num charco. Se alguma emoção governasse isto tudo não seria amor nem ódio. Seria a indiferença absoluta.

A tragédia é muito maior do que o sofrimento dos humanos de hoje. A nossa espécie já sofre há centenas de milhares de anos, os primatas há cinquenta milhões e os mamíferos há trezentos milhões de anos. E sabe-se lá quantas espécies capazes de sofrimento existiram nos quatro mil milhões de anos de vida neste planeta e em quantos outros planetas nos treze mil milhões de anos que dura este universo, imensamente mais vasto do que qualquer coisa que as religiões puderam imaginar. A indiferença do universo perante toda esta tragédia é um problema muito maior para a hipótese do deus bondoso do que os humanos serem mauzinhos de vez em quando, que não passa de um detalhe insignificante na história do sofrimento. No entanto, nada disto configura o problema filosófico que os teólogos apregoam. Distinguir entre o bem e o mal é um problema filosófico importante mas o mero facto de existir sofrimento e de ser possível agir com bondade ou maldade é filosoficamente tão misterioso como a existência da pedra pomes ou a possibilidade de fazer croché.

O “problema do mal” é apenas o problema de insistir, contra as evidências, que este universo é governado por um ser infinitamente bondoso. A alegação não só é obviamente falsa como até é moralmente repugnante. Sem um deus desses, muita da tragédia que enfrentamos é simplesmente algo que acontece. Uma doença incurável, um acidente imprevisível. Um azar, sem maldade nem culpa. Mas se acreditarmos num deus desses temos de acreditar que toda a tragédia é maldade porque temos de acreditar que toda a doença tem cura, que todos os acidentes são evitáveis e que a tragédia só acontece porque o ser supremo não se importa com quem sofre. A indiferença natural de um universo que não pensa nem sente torna-se na indiferença cruel de um deus que se limita a apreciar o sofrimento quando o poderia evitar sem qualquer esforço. Isto não é um problema filosófico do mal. É um problema psiquiátrico da fé.

* Isto é inconsistente com a tese de que Deus e todas as almas no paraíso têm vontade livre mas são incapazes de praticar o mal. A própria teologia exige que a vontade livre seja compatível com a bondade perfeita. Mas como é melhor refutar disparates com factos do que com outros disparates remeti esta objecção para o rodapé.

1- OMS, Children: reducing mortality

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