23 de Julho, 2014 David Ferreira
De rerum natura – Ato único (Debates na internet ou das conversas de merda politicamente corretas)
Pavão- Cuidado com o monte de merda!
Borboleta- Onde?
Pavão- Ali à frente.
Borboleta- Não é um monte de merda. É apenas cocó.
Pavão- Cocó? Chama-lhe o que quiseres. Para mim é um monte de merda. E dá para cheirar daqui. O tipo que o fez já devia estar morto e não o sabia.
Borboleta- Não digas isso. Não fales assim. É desrespeitoso tanto para o cocó como para quem o fez.
Pavão- Tens a noção de que estamos a falar de merda, certo?
Borboleta- Não. Tu estás a falar de merda. Eu estou a falar de cocó. São duas coisas completamente distintas, só tu é que não vês. O cocó faz parte da vida, faz parte de nós, faz parte do ciclo da natureza. Tem direito ao seu lugar e deve ser respeitado como outra coisa qualquer.
Pavão- Eu também não disse o contrário. Só te avisei para te desviares e não borrares os sapatos. Merda ou cocó, é tudo a mesma coisa.
Borboleta- Não. Merda tem um sentido pejorativo, não dignifica o cocó, denota preconceito da tua parte.
Pavão- Preconceito? Mas tu estás doida?
Borboleta- Sim, preconceito. Sinto isso sempre que estou mais à vontade contigo. Quando estamos sozinhos é que dá para ver o que tu és na realidade.
Pavão- Provavelmente porque quando estamos sós não precisamos de merdas para falar de merda. Merda como aquela que está ali a fumegar e que parece ter olhinhos que pelo tamanho só podem ser caroços de azeitona. Se estivesse aqui alguém connosco provavelmente teria alguma sensibilidade às suas merdas e não me referiria ao monte de merda que ali está como merda, mas sim como cocó ou pupu ou qualquer outra palavra às bolinhas.
Borboleta- Essa indireta das bolinhas foi para a minha saia? Estás a comparar-me à merda? Nunca me enganaste. Começo a ver agora o tipo de pessoa que tu és.
Pavão- Não digas merda, que é feio. É cocó…
Borboleta- Ai eu sou cocó? Logo se vê o que eu valho para ti.
Pavão- Não foi isso que eu quis dizer. Estava a ironizar. Para mim é merda.
Borboleta- Ai eu sou merda? Estás a ver como tu és?
Pavão- Não és tu, pá, é a merda que está ali à frente a querer fazer-nos uma pega de caras que é merda! Merda, pá! Um cagalhão que cheira mal como todos os cagalhões. Um monte de merda que um tipo qualquer cagou, assim como eu e tu cagamos os nossos.
Borboleta- Não precisas de ficar violento. Estás a partir para o ad hominem e isso significa que perdeste a razão e não tens mais argumentos válidos para apresentar.
Pavão- Tu é que me estás a tirar do sério com as tuas merdas por causa da porcaria de um monte de merda.
Borboleta- Vês como tenho razão. Eu já tinha lido sobre tipos como tu. Parecem uns sonsos à primeira vista mas acabam sempre por revelar a sua verdadeira natureza intolerante.
Pavão- Ai sim? E onde é que leste isso? Naquelas revistas pseudocientíficas que uns maluquinhos cheios de recalcamentos publicam para venderem as suas psicoses aos mais desatentos?
Borboleta- Ai agora sou psicótica também…
Pavão- Não és, mas se continuares a permitir que esses merdas psicóticos te influenciem vais acabar por ficar. E tudo por causa de um monte de merda!… Que merda, pá!
Borboleta- Cocó! Cocó! Tu és é um cocofóbico, é o que tu és.
Pavão- Cocofóbico? Mas tu endoidaste de vez? Fobia é medo e eu não tenho medo de merda. Posso não gostar do aspeto e do cheiro, mas isso não tem nada a ver com medo. E não sou obrigado a gostar da merda dos outros. Respeitar o cagalhão alheio é uma coisa. Ser obrigado a amá-lo é outra. De onde é que te saiu essa do cocofóbico? Não me digas que leste um artigo qualquer numa dessas revistas. Mas agora andas a ficar dogmática? Já não consegues separar a realidade da ficção? Já pensas com a cabeça dos outros? Assim não vais longe, acredita. Qualquer dia começam a olhar para ti como uma maluquinha.
Borboleta- Pois, eu é que sou maluca. Mas o preconceituoso és tu.
Pavão- Olha… Ali à frente está um monte de merda. Ou um monte de cocó…
Borboleta- Monte de cocó… Já começam as generalizações…
Pavão- …um pedacinho de bosta… uma coisa com mau aspeto, que cheira mal e que nos vai sujar os sapatos se não lhe passarmos ao lado ou por cima. Vamos andando, que se faz tarde. Por favor, antes que isto dê merda. É que depois desta conversa toda já me apetece ir à casa de banho fazer, sei lá, merda?…
Borboleta- A tua podes ter a certeza que é merda que eu bem tenho que esperar uma boa meia hora para entrar na casa de banho depois de lá saires.
Pavão- Ai os meus cagalhões já são merda só porque são meus!… Já não são cocó. E tu, julgas que os teus cheiram a água de rosas?
Borboleta- Os meus não me cheiram a nada. Já os teus, deixa-me que te diga… já que estamos numa de sinceridade…
Pavão- Pois, a nossa merda nunca nos cheira tão mal como a dos outros. Foi assim que a natureza nos moldou. Os cheiros já foram importantes para a nossa evolução, não aprendeste isso nas tuas revistas?.
Borboleta- Pois então tu não evoluíste, ainda estás na fase Neandertal. Deve ser por isso que és tão preconceituoso com os outros. Ou então é o fel da ruindade que te faz cheirar tão mal.
Pavão- Eu não sou preconceituoso, apenas sei distinguir um monte de merda de um monte de lama. Sou um empirista empedernido, que queres? Tudo o resto é semântica. Olha, vamos acabar com esta conversa de merda e vamos embora que está a cair a noite e não tarda nada temos que andar a apalpar o chão para não tropeçar nos cagalhões dos outros.
Borboleta- Vai à merda.
Pavão- Eu não, que estes sapatos são novos!
E foram.