O reverendo Luís e a procissão (Crónica)
Ao Luís não eram conhecidas virtudes públicas quando terminou o curso de engenharia e anunciou que tinha ouvido um chamamento. Julgaram que mencionava alguma oferta de emprego que um recém-licenciado sempre almeja. Nada disso. Rumou ao seminário e era vê-lo, quando regressava, nas férias, embevecido, a acolitar o padre nas cerimónias pias.
Não tardou, o tempo passa depressa, que o fizessem diácono e, a seguir, padre. Com que orgulho passou a substituir nos serviços litúrgicos o padre Manuel que, em Agosto, se deslocava ao Brasil impelido pelo gosto da viagem ou pelo desvelo paternal, segundo murmuravam os paroquianos desconfiados de uma filha naquelas paragens.
Um dia o João Nunes, antigo colega e também engenheiro, encontrou o reverendo Luís e disparou-lhe:
– Então como vai o engenheiro?
– Engenheiro, não, padre se faz favor, porque engenheiros há muitos e padres poucos.
– E o que é preciso para ser padre, retorquiu o primeiro, com visível boa disposição.
– É preciso ter juízo.
– Que grande cunha !…
E o diálogo terminou abruptamente, com o jovem clérigo amuado.
Começou aí o azedume do reverendo, emproado com as vestes talares e o colar romano que lhe cingia o pescoço, indiferente à canícula, persuadido de que a batina encobria os pecados e o engrandecia aos olhos dos profanos.
Alguns dias depois, na procissão da Senhora da Barca, o reverendo Luís comandava, no trajeto do costume, o cortejo, as orações e os cânticos quando, junto da esplanada do Café da Candidinha, se tresmalhou do pálio e se aproximou dos fregueses, crucifixo em riste, colérico, para os desancar evangelicamente, enquanto os devotos desfrutaram a pausa na fé e no percurso assistindo ao espetáculo profano.
Os alvos foram antigos colegas de colégio quando este era o único estabelecimento de ensino secundário no concelho. O João Nunes, o Aristides e o Zé Vaz aguentaram em silêncio a descompostura de quem não lhes tolerou a troca da devoção pela cerveja de barril. Foram admoestados furiosamente, seus hereges, não respeitam o padre, não se ajoelham à passagem da procissão, ofendem Deus Nosso Senhor, não têm consideração pela Senhora da Barca, indignos, pagãos… e, só depois de serenado com o espectáculo pio, o presbítero se recolheu ao pálio e à procissão que prosseguiu perante a assombro de alguns paroquianos e o gáudio de muitos outros.
Os hereges ficaram algum tempo mudos, mal refeitos da censura e do medo de levarem com a cruz, brandida pelo irado reverendo que, no delírio, parecia querer usá-la à vista dos devotos. Só quando a cauda da procissão se sumiu, as pernas deixaram de tremer e a calma voltou, soltaram os desabafos reprimidos que incluíram a mãe do padre.
A ligação entre os antigos colegas de colégio excluiu do convívio o presbítero e foram parcas as relações que ficaram. As férias terminaram e cada um foi à vida, enquanto o reverendo Luís regressou à paróquia da diocese de Lisboa onde exercia as funções a que o alegado juízo o predestinou.
No ano seguinte, no dia canónico, a procissão da Senhora das Neves repetir-se-ia com o padre Manuel no Brasil e o reverendo Luís a substituí-lo. Apenas os réprobos do ano anterior evitaram o café, não fosse o diabo tecê-las, e repetir-se a cena insólita.
A procissão teve a precedê-la a missa, como era uso, onde o reverendo Luís enalteceu as virtudes da santa e verberou o comportamento de paroquianos ausentes, indiferentes à procissão, capazes de se manterem sentados enquanto o andor, o pálio e a cruz viajavam pelas ruas. Soube-se que foi pobre a homilia e grande o acinte que moveu o oficiante, capaz de desancar os réprobos se, acaso, os visse perto do cortejo pio, sem se rojarem de joelhos à passagem. Não consta que os devotos se tivessem deixado encolerizar, apesar de acirrados, pelo jovem e piedoso presbítero que, a seguir, presidiu à procissão.
Pelas ruas ainda se viam colchas garridas às janelas quando o andor, o pálio e outros adereços desfilavam pelas ruas da vila. A procissão progredia vagarosamente com as orações e os gestos da coreografia de sempre. O Valdemar lançava foguetes em honra da santa, longe do cortejo, para evitar que as canas atingissem os devotos, indiferente aos incêndios que podia atear e a que, como bombeiro, teria de acudir.
Na esplanada do café da Candidinha o reverendo Luís viu, de longe, ocupada a mesa onde a experiência lhe dizia não morar a devoção. Ao chegar próximo do local, saiu do pálio e correu de cruz erguida a admoestar os incréus, seus hereges, seus malcriados, não respeitam Deus, não estimam a santa, não veneram a cruz, não temem o Inferno, não conhecem a cólera divina e…, esgotada a pia admoestação, cego de raiva e fervor, regressou ao pálio e aos cânticos para glória da Senhora das Neves.
Na mesa onde um ano antes estiveram ímpios, um casal estrangeiro, surpreendido, sem nada ter percebido, hesitava em dar o iogurte ao filho.
Perfil de Autor
- Ex-Presidente da Direcção da Associação Ateísta Portuguesa
- Sócio fundador da Associação República e laicidade;
- Sócio da Associação 25 de Abril
- Vice-Presidente da Direcção da Delegação Centro da A25A;
- Sócio dos Bombeiros Voluntários de Almeida
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- Colaborador do Jornal do Fundão;
- Colunista do mensário de Almeida «Praça Alta»
- Colunista do semanário «O Despertar» - Coimbra:
- Autor do livro «Pedras Soltas» e de diversos textos em jornais, revistas, brochuras e catálogos;
- Sócio N.º 1177 da Associação Portuguesa de Escritores
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