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  • 21 de Dezembro, 2013
  • Por Carlos Esperança
  • Literatura

Com a corda na garganta (Crónica)

O cavador, vergado ao peso da enxada e da fé, descansava ao domingo por imposição canónica e dos outros paroquianos. Choravam-lhe os filhos, com fome, e doía-lhe o silêncio da mulher. Vivia em aflição e, enquanto o padre transformava a água vulgar em benta e as rodelas de pão ázimo em hóstias consagradas, ia duvidando da fé.

Não o empolgava o latim, não se condoía do martírio do seu deus e descria da virtude do padre.

No domingo ansiava pela segunda-feira, esperando que um lavrador o chamasse para os trabalhos agrícolas, à espera de oito mil réis e da canada de vinho com que reunia forças para, com a côdea de pão e o escasso peguilho, aguentar a jorna e a família.

Já por várias vezes temera ter de vender as cabrinhas que os filhos apascentavam à beira dos caminhos. Sem leite, queijo e cabritos, que dali vinham, sem o toucinho que ficava da venda dos lombos e dos presuntos do porco que a mulher criava, como iria alimentar os seis filhos que ainda restavam dos dez que Deus quisera?

No Inverno não havia trabalho e era escassa a comida. Na panela fervia um coirato que acabaria repartido por todos para acompanhar as magras fatias do pão duro que restava da última fornada. O naco de toucinho, que saíra da salgadeira, escoltava o coirato para dar paladar às couves e batatas que ferviam na panela de ferro. Que raio de vida, a dos pobres. Era a vontade de Deus que, assim, se cumpria.

Uma tarde, a mocha, a cabra que dava mais leite, pareceu doente. De manhã acharam-na morta, barriga inchada, quem sabe o que comera. O cavador teve de carregar com ela e enterrá-la, nem a pele lhe aproveitou.

Dois dias depois os sinos da aldeia tocaram a sinais. Perguntei quem tinha morrido, foi o Zé da Catrina, menino, devia estar doido, com mulher e seis filhos, fazer uma coisa dessas, não andava bom da cabeça. Prendeu na trave da casa a corda que lhe ficou da cabra e, com ela, fez um laço. Subiu a um banco e meteu-lhe dentro o pescoço. Quando voltaram da missa, a mulher e os filhos foram dar com ele, com os olhos muito abertos, a língua de fora e o banco caído.

Ficou assim no dia seguinte, as moscas a poisarem nele, até chegarem as autoridades. Foi o maligno, murmurou-se na aldeia, só podia ser, o Zé era pouco devoto, abandonou Deus, entraram nele os espíritos.

O padre recusou fazer o enterro. A Catrina ajoelhou-se a implorar que o acompanhasse mas o sacerdote invocou o direito canónico. O coveiro abriu-lhe a cova longe dos outros mortos, num talhão ainda sem campas e por benzer, talvez para não atormentar os que morreram confortados com todos os sacramentos.

Já lá vão seis décadas. A terra tratou certamente o Zé da Catrina de forma igual aos que temeram a Deus e cumpriram os mandamentos.

Perfil de Autor

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- Ex-Presidente da Direcção da Associação Ateísta Portuguesa

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- Colunista do semanário «O Despertar» - Coimbra:

- Autor do livro «Pedras Soltas» e de diversos textos em jornais, revistas, brochuras e catálogos;

- Sócio N.º 1177 da Associação Portuguesa de Escritores

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