Sentir (aquele) deus.
«Smart: At the moment, seven Coast Guard cutters are converging on us. Would you believe it?
Mr Big: I find that hard to believe.
Smart: Hmmm . . . Would you believe six?
Mr Big: I don’t think so.
Smart: How about two cops in a rowboat?»
(Get Smart)
As justificações para crer na existência de um deus abrangem uma vasta gama de categorias contraditórias. Num extremo, dizem que nada se pode observar desse deus e que só se pode provar formalmente a sua existência a partir de axiomas que o crente escolheu. Lá para o meio, o deus não pode ser observado mas dá indícios empíricos da sua existência por milagres progressivamente mais discretos, desde o dilúvio mundial a desviar, pouco, a bala que mataria o Papa ou tratar salpicos de fritura. No outro extremo, alegam que o deus é um dado empírico imediato, como a sede ou o amor, que se sente directamente e que, por isso, não se pode senão aceitar que existe. A contradição entre estas justificações não seria problema se cada crente escolhesse uma. Há tantos deuses diferentes que não é preciso atropelos. No entanto, é comum os apologistas religiosos tentarem todos estes tipos de justificação, em série, a ver se algum pega. O resultado conjunto acaba por ser ainda menos persuasivo do que cada uma das justificações individuais.
Por seu lado, mesmo individualmente estas justificações têm problemas e já abordei aqui muitas vezes os defeitos dos dois primeiros tipos. Não se prova a existência de um ser real como quem demonstra um teorema, partindo de axiomas arbitrários, e o deus milagreiro acaba por ser um deus das lacunas porque só há milagres no que não se compreende. Mas tenho descurado este último tipo de justificação, o de crer num deus porque se sente esse deus. A última vez que me lembro de ter discutido isto foi há uns anos, com o Alfredo Dinis (1), para apontar o problema de uma mera sensação não servir para fundamentar os dogmas religiosos. Uma coisa é entrar numa igreja e sentir a presença de alguém que não se vê. Outra bem diferente é sentir que se trata de Deus, Pai todo-poderoso, Criador do céu e da terra, e Jesus Cristo, gerado do Pai antes de todos os séculos, da mesma substância do Pai, que encarnou pelo Espírito Santo no seio da Virgem Maria, foi crucificado, ressuscitou dos mortos ao terceiro dia e assim por diante. Não é plausível que uma sensação seja tão específica e detalhada. Mas há outros problemas.
O primeiro é que umas pessoas dizem sentir que existe um deus enquanto outras não sentem nada disso. Mesmo entre as que sentem não há consenso acerca de que deuses sentem ou quantos são. Sentir um deus é como ver auras. Há quem diga que vê auras coloridas à volta dos outros, conforme a personalidade ou estado de espírito mas, além de muita gente não ver aura nenhuma, aqueles que as dizem ver divergem nos detalhes que relatam. Assim, o mais razoável é explicar essas alegações por factores psicológicos ou sociológicos em vez de concluir que existem mesmo as tais auras. Com os deuses é a mesma coisa.
Em segundo lugar, mesmo sensações consensuais podem ser enganadoras. Por exemplo, qualquer pessoa verá luzes se fechar os olhos e os esfregar com força. Isso não prova que haja luzes dentro dos olhos. É apenas a forma do cérebro interpretar os impulsos provenientes dos neurónios da retina. Também é comum ter sonhos como o de um cão a morder-nos o braço e acordar em cima do braço dormente. Não por culpa do cão mas por uma fantasia do cérebro adormecido a interpretar os sinais nervosos do braço. Se bem que seja sempre pelos sentidos que apreendemos a realidade que nos rodeia, não é prudente saltar para uma conclusão com base apenas num tipo de experiência, sem confirmação independente. Nem nos raptos por extraterrestres, nem nos demónios e fadas e nem em deuses. Devemos confiar na confluência consistente de indícios em vez de confiar de imediato em sensações isoladas. O chavão “ver para crer” assume, incorrectamente, que se eu vir um elefante cor de rosa a esvoaçar à minha volta devo concluir que existem elefantes voadores cor de rosa mas o mais sensato, numa situação dessas, será consultar um neurologista.
Finalmente, a nossa percepção é fortemente influenciada pelas nossas expectativas. A comunicação entre o sistema nervoso periférico e o sistema nervoso central é bidireccional, muitas vezes até com mais informação do cérebro para os sentidos do que destes para o cérebro, o que condiciona muito o que os nossos sentidos nos dizem. Por exemplo, nas semanas a seguir à morte do meu pai vi-o várias vezes na rua e nos transportes públicos. De vez em quando, ao cruzar-me com alguém mesmo levemente parecido com o meu pai, o cérebro pregava-me essa partida e, por momentos, era a ele que eu via. Não é nada estranho que haja histórias de fantasmas em todas as culturas humanas, ou que haja quem alegue ter visto o Sol a rodopiar quando, movido pela fé, foi à Cova da Iria determinado a ver milagres. Também não é estranho que quem queira muito acreditar que um deus existe acabe por conseguir sentir a presença desse deus.
Sentir que um deus existe pode ser justificação suficiente para o crente. Aderir ou não a uma religião é uma opção subjectiva e nisso conta o que cada um quiser. Mas, dado o contexto e a falta de indícios independentes que o confirmem, não é evidência para a existência de Deus.
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