Novamente o conhecimento.
No post anterior disse que sei não existirem deuses mas que admito poder estar errado. Isto parece ter criado alguma confusão. O Paulo comentou que «Obviamente, se assumo que posso estar errado, não posso dizer honestamente que sei com certeza absoluta. Ou seja, não sei.»(1) e o Molochbaal que «Afinal o Kripphal é kamarada um agnóstico que ainda não saiu do armário»(2). Não é nada disso. Nem é preciso certeza absoluta para saber nem eu sou agnóstico. Mas é melhor começar pelos termos, para evitar mais confusão.
Exceptuando eventuais casos patológicos, todos temos crenças e certezas. A crença é a disposição para aceitar uma proposição como verdadeira. Por exemplo, “a Terra é aproximadamente esférica”. Não é uma afirmação que eu tenha sempre em mente mas, sempre que surja, estou disposto a aceitá-la como verdadeira. Portanto, acredito que a Terra é aproximadamente esférica. A certeza é o grau máximo dessa disposição, tal que já nada poderá aumentar a confiança depositada na afirmação. Tenho a certeza de que a Terra é aproximadamente esférica porque não me restam dúvidas que possam ser reduzidas com mais evidências nesse sentido. Para mim, este assunto já está resolvido e não preciso de mais fotografias, medições ou argumentos confirmatórios. Mas esta certeza não é absoluta. Depende dos dados de que disponho e, por isso, pode ser eliminada por evidências contrárias que me suscitem dúvidas. O facto de não ter dúvidas agora não implica que não as possa vir a ter se novos dados o justificarem. A certeza absoluta é completamente diferente porque é imune às evidências. A minha certeza de que não tenho cobras em casa é razoável e útil porque tenho boas razões para confiar que não há cobras aqui e, graças a esta certeza, não preciso de abrir portas e gavetas com o cabo da vassoura. Mas seria irracional, e até perigoso, se esta certeza fosse absoluta e se nem ver uma cobra no meio da sala me fizesse duvidar. A certeza absoluta é o objectivo último da fé mas é a antítese do conhecimento, da racionalidade e até dos instintos mais básicos de auto-preservação.
O conhecimento, segundo a definição mais comum, é uma crença verdadeira e justificada. É crença porque seria contraditório saber algo que não se está disposto a aceitar; verdadeira porque senão seria erro em vez de conhecimento; e justificada porque acertar por palpite não conta. Não há nada aqui que exija certezas. Excluindo apenas a certeza absoluta, que é injustificável, o grau da crença pode ir desde o mais reservado “parece plausível” até à certeza do “aposto a minha vida e as da minha família nisso” que demonstramos cada vez que andamos de elevador ou a 120km/h na autoestrada. É obviamente incorrecta a noção de que só tendo a certeza é que sabemos ou, pior ainda, de que só com certeza absoluta é que podemos saber. Mas a definição de conhecimento não mostra onde entra a possibilidade de erro. A definição apenas delimita um conceito e, por si só, não tem qualquer alvo que possa falhar: ou a crença é verdadeira e justificada e é conhecimento, ou falha um requisito e não é. Para conciliar a minha alegação de que sei que não existem deuses com a admissão de que posso estar enganado é preciso considerar também a aplicação prática da definição.
É claro que se a crença for falsa, não será conhecimento por muitos indícios que a justifiquem. Dantes acreditava-se que a gravidade era uma força de atracção instantânea e o sucesso dessa hipótese justificou bem a crença. Mas era falsa. Hoje dizemos saber que a gravidade é uma deformação no espaço-tempo e que se propaga à velocidade da luz, o que se justifica por a teoria da relatividade ter sido testada com grande precisão (3). Será verdade? Sem acesso directo à verdade das proposições, nunca podemos excluir a possibilidade de erro. Só podemos, em cada fase, ir determinando que crenças têm melhor fundamento e se houver alguma que se justifica concluir verdadeira, então também se justifica chamar-lhe conhecimento. Se for erro, depois corrige-se, mas não vamos ficar eternamente paralisados na ignorância à espera de conclusões definitivas.
É assim que eu sei que não existem deuses mesmo rejeitando certezas absolutas. A minha crença de que Hórus, Zeus, Odin e Jahvé são personagens tão fictícios como o Pai Natal ou o Tintin está suficientemente justificada para lhe chamar conhecimento. O agnosticismo, além de ser aplicado apenas aos deuses mais populares, sugerindo que se deve a considerações mais sociais do que epistémicas, é inconsistente nos critérios. Os agnósticos aceitam serem conhecimento conclusões como as de que é perigoso ter o esquentador na casa de banho ou que há água em Marte enquanto rejeitam sequer a possibilidade de se saber se a história de um personagem que transforma pessoas em sal e faz milagres é realidade ou ficção.
É legítimo chamar conhecimento à crença que podemos justificar de forma objectiva e adequada. O problema da justificação é complexo em teoria mas, na prática, as diferenças entre crenças justificadas e crenças sem fundamento são normalmente claras. Compare-se, por exemplo, o criacionismo com a biologia ou a astrologia com a astronomia. A crença pode ser ou não uma certeza, conforme considerarmos que já não vale a pena obter mais evidências a seu favor ou que ainda nos restam dúvidas, mas qualquer certeza racional depende da informação de que se dispõe e admite a possibilidade de revisão se surgirem dados contraditórios. Perceber isto ajuda a evitar dois erros comuns. Do lado do cepticismo inconsistente, o erro de defender que não se sabe só porque não se tem a certeza absoluta. Do lado da fé, o erro de defender que algo é conhecimento só porque muitos acreditam com intensidade e sinceridade. O fundamental para considerar que uma crença é conhecimento é a sua justificação objectiva. A certeza é opcional e a fé é irrelevante na melhor das hipóteses ou um obstáculo se impedir a conclusão correcta.
1- Comentário em Acreditar, saber e afirmar. (no Que Treta!)
2- Comentário em Acreditar, saber e afirmar. (no Diário de uns Ateus)
3- Wikipedia, Tests of general relativity
Em simultâneo no Que Treta!