Deus num tubo de ensaio
Deparo-me amiúde com a afirmação falaciosa de que os sentimentos não são susceptíveis de demonstração ou de aferição, tal como Deus. Não creio que a afirmação seja deliberadamente falaciosa com o intuito de justificar um conceito improcedente, mas apenas o resultado de uma análise superficial e dedutiva, um mero erro de perspectiva.
De facto sabemos hoje que os sentimentos são o produto das reacções químicas que ocorrem no sistema límbico, região do cérebro responsável pelas emoções e pelos comportamentos sociais, e que não são exclusivos à nossa espécie. Sabemos, de igual modo, que toda esta maravilhosa obra da engenharia do acaso não é, nem nunca foi, uma construção definitiva, mas sim a consequência de um longo processo de evolução biológica que nos foi apurando até ao estado em que nos encontramos. Toda a intrincada panóplia de componentes químicos que compõem o nosso sistema nervoso não é mais que um complexo mecanismo organizado de modo a permitir-nos a ilusão de um formato de realidade ao qual nos adaptámos e nunca o contrário, evoluindo para sobreviver. O que nos permite concluir, com toda a certeza, que o conceito de Deus apenas surgiu com o advento do aparecimento dos seres que agora designamos como espécie humana, tendo essa conceção sofrido, de igual modo, um processo evolutivo intrinsecamente relacionado com a evolução sociocultural da humanidade desde o seu estado mais primitivo, iniciado em África há aproximadamente 200 mil anos.
Habitamos um insignificante planeta que se formou há 4,54 biliões de anos perdido num Universo que surgiu há mais de uma dezena de biliões de anos. Existimos num Universo inefavelmente gigantesco, quiçá apenas um de uma infinidade de outros universos paralelos. Não obstante estas medidas astronómicas de tempo e espaço, somos menos que um grão de areia nesta imensidão de matéria e energia e um evento demasiado recente para que possamos concluir de ânimo leve que fomos criados por uma entidade infinitamente grandiosa e absoluta com algum hipotético objetivo. Quem aceitar o conceito de um criador omnipotente, e se for intelectualmente honesto e saudavelmente lúcido (excluo, à partida, todos os criacionistas), não pode fugir ao quesito pertinente que surge, inevitavelmente, após uma simples reflexão: que andou essa inexprimível entidade a fazer durante tanto tempo? Ou, para ser mais categórico, porque demorou essa entidade tanto tempo para se decidir a criar vida, ou seja, matéria consciente de si própria, e com que propósito? Obviamente não existem respostas válidas, teológicas ou filosóficas (a distinção é propositada), que satisfaçam a pertinência destas questões. E eu também não tenho respostas para propor. Só que o motivo por que não tenho respostas para elas é o mesmo que me faz ser ateu e não agnóstico. Pura e simplesmente não coloco essas perguntas. Não porque não tenham valor intelectual, mas por não serem conformes à própria realidade, uma vez que partem de conjeturas que considero surreais e não de premissas conformes à natureza dessa realidade que conseguimos apreender, seja pela razão, pela observação ou pela possibilidade de experimentação. Se divagássemos constantemente por todas as possibilidades que conseguimos imaginar de modo a responder a todos os porquês que pretendemos alcançar, desperdiçaríamos uma vida inteira sem esgotar uma ínfima parte dessas possibilidades e sem obter resultados satisfatórios.
Dirão os crentes numa realidade metafísica, imaterial, que sou eu que estou errado, que sou eu que cometo um elementar erro de análise. Mas a pergunta que lhes coloco é com que autoridade, base ou princípio me podem eles apresentar uma justificação que eu possa aceitar como credível para a existência desse mundo paralelo e inexplicável que eu afirmo apenas existir na sua imaginação? Seja qual for a resposta, ela residirá nesse incompreendido órgão que é responsável pela consciência que designamos por espírito ou alma, o nosso cérebro evoluído. É nele que todos os deuses se inventam, sempre por necessidade e sempre como solução para as questões que não sabemos responder, sobretudo porque as colocamos de uma forma errada. É nesse órgão, que existe por si próprio, que se manifestam todas as emoções e sentimentos de que necessitamos para sobreviver como espécie social, interagindo produtiva e eficazmente. E no entanto…
No entanto o conhecimento que colecionámos ao longo da nossa curta existência já nos permite responder a muitas das questões que assolam as nossas mentes constantemente em busca de se compreender, quase sempre com resultados desastrosos ou enganadores. O que me leva a não perceber o porquê de continuarmos a colocar tais interrogações, sobretudo quando muitas delas já o deixaram de ser.
Enchamos um tubo de ensaio com uma dose excessiva de dopamina e teremos um cálice de esquizofrenia; retiremos uma grande quantidade dessa dopamina e tomaremos um shot de ansiedade; enchamo-lo de novo com uma boa dose de serotonina e brindemos, inebriados de felicidade; com pouca quantidade de serotonina e dopamina sofreremos uma ressaca de depressão; façamos então um explosivo cocktail com grandes quantidades de serotonina, dopamina e oxitocina e embebedemo-nos de amor; soframos um acidente que danifique alguma área desse magnífico órgão e não seremos mais os mesmos, mudaremos existencialmente; nasçamos com algum defeito congénito cerebral e a realidade terá outro sentido; soframos agressividade externa e extrema na infância e todo o potencial que teríamos como adultos se distorcerá; tomemos qualquer tipo de droga química que não a produzida naturalmente pelo corpo e a realidade apresentar-se-á completamente distinta à nossa percepção, enquanto se mantem, no mesmo período espácio-temporal, igual ao que sempre foi para quem não a tomou; encerremo-nos numa gruta de um qualquer deserto, em pura meditação, abstendo-nos de qualquer estímulo sensorial ou da satisfação de necessidades básicas, e veremos deuses, anjos imateriais que necessitam de asas para voar no mundo material, demónios hediondos a espicaçar pecadores que se contorcem num fogo eterno, exibindo expressões de dor só possíveis na física da carne – um mundo material a materializar-se num mundo metafísico porque a entidade responsável por o elaborar evoluiu nesse sentido.
Sobre Deus nada se sabe pois nunca se apresentou à humanidade, apesar de insistentemente ouvirmos quem afirme saber o que ele pretende. E esqueçamos todas as visões transcendentais, as experiências místicas, os milagres que curam doenças curáveis ou rearranjam desordens mentais. Todos não passam de grandes embustes, de erros de interpretação, de alucinações, de acidentes químicos. Já quanto aos sentimentos, não só sabemos como e onde se originam, como sabemos o porquê de existirem. E podem perfeitamente demonstrar-se ou aferir-se. Uma vez que eles existem como reguladores de interacção social, podemos observar o resultado que as acções que eles produzem provocam nos outros, assim como podemos senti-los e geri-los a nosso bel-prazer, da forma que nos for mais conveniente. Quando não o conseguimos fazer, isso significa que ainda não atingimos a maturidade ou que algo interferiu com o normal funcionamento da máquina biológica, transtornando a experiência existencial. É nessa altura que quem se sente incompleto ou deslocado procura ajuda ou salvação, porque não compreende ou não se compreende.
Podemos não ter todas as respostas, mas as que temos são suficientes para solucionar muitos dos problemas que apenas existem porque insistimos em colocar questões que há muito estão respondidas, tendo por isso deixado de o ser. E é uma pena que nem toda a gente tenha acesso a elas ou que não as saiba compreender e, muitas vezes, aceitar.
Quer queiramos quer não, não passamos do resultado da interação de complexos processos químicos que ocorrem dentro do tubo de ensaio craniano e que nos dão a noção de ser. Deus, como qualquer sentimento, sonho, ilusão ou suposição, apenas se manifesta nesse espaço restrito e confinado. Mas se o sentimento tem um resultado prático, já Deus é apenas uma questão que se vai sumindo aos poucos à medida que a respondemos, tornando-se desnecessária tanto para explicar como para compreender.