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Mês: Setembro 2013

30 de Setembro, 2013 José Moreira

Falta de visão…

Qualquer papa que se preze, logo que passa para as mãos do defunteiro só tem uma preocupação: tratar de obrar o maior número possível de milagres, para ser promovido a santo ou, será preferível dizer, a ressanto, uma vez que santo já ele é enquanto respira. Trata-se, pois, de uma redundância.

Compreende-se. Por via de regra, agarram-se ao poder com tal gana, que quando deixam a profissão é para se entregarem nas defunteiras mãos.

A confirmar o que escrevo o papa F1, o Chico para os amigos, acaba de anunciar não um, mas dois futuros santos: o ex-papa JP2 e o também ex-papa J23. Ambos ex-vivos, como não podia deixar de ser.

Felizmente, a História legou-nos uma excepção àquilo que tem sido a regra. Joseph Ratzinger ainda está vivo e são. Por isso, não se compreende a falta de sentido de oportunidade que o mesmo manifesta, em oposição à clarividência exibida durante o exercício papal. Então, não seria de aproveitar a oportunidade e desatar já a miracular tudo quanto disso fosse passível? Logo agora, que não tem mais nada que fazer e está a gozar uma merecida reforma? Por que raio está a roubar, urbi  et orbi, a suprema felicidade de ser canonizado ainda em vida? Além do mais, seria um estonteante golpe publicitário, que guindaria a ICAR para os lugares cimeiros do ranking das empresas religiosas. Está à espera de quê? De morrer? Mas isso deixa de ser original, não tem piada nenhuma: depois de morto, qualquer papa é canonizado. Em vida é que nunca aconteceu.

Julgo eu…

30 de Setembro, 2013 David Ferreira

Teísmo, ateísmo e agnosticismo

Um crente, um ateu e um agnóstico decidem organizar um jogo de futebol com fins caritativos. O agnóstico, que não gostava de desporto competitivo por ter receio de se lesionar, resolve ser o árbitro.

No início da partida, juntam-se os três no centro do relvado para sortear a bola e o campo. O crente, com o peito inchado de fé e esperança, olha o ateu nos olhos e diz, esfregando as mãos:

– Está no papo!

O ateu, mirando o crente de alto a baixo, retorque, condescendente:

– Tu estás mas é maluco. Como podes tu ganhar? Tu és só um e eu tenho 11 jogadores na minha equipa. Para além do mais tu só tens uma perna!

Ao que se interpõe o agnóstico:

– Prognósticos só no fim do jogo! Prognósticos só no fim do jogo! Enquanto a bola rolar, não se pode conhecer o resultado…

30 de Setembro, 2013 Carlos Esperança

A IGREJA E A ESCRAVATURA

A IGREJA E A ESCRAVATURA

Por João Pedro Moura

A Igreja Católica Apostólica Romana, mais na prática do que na teoria, sempre defendeu ou contemporizou com a servidão e a escravatura, nos tempos em que isso era normal, devidamente alicerçada nos seus fundamentos bíblicos.

Ocasionalmente, um ou outro clérigo, mais dos dominicanos, no séc. XVI, e mais dos jesuítas, no séc. XVII, criticaram os aspetos mais horrendos do esclavagismo, mas sem verdadeiramente se oporem a tal comércio de pessoas.

Alguns papas também “condenaram” a escravização, mas sem consequências para o comércio e utilização de escravos, por parte de clérigos ou leigos, até porque as determinações papais eram difíceis de aplicar nas lonjuras coloniais.

Só em 1839, com a Constituição “In Supremo”, o papa Gregório XVI faz um ataque muito elaborado e inequívoco a todo o tipo de escravaturas, abrangendo todos os tipos étnicos escravizados, e proíbe mesmo o pessoal eclesiástico e leigo de defender sequer ou condescender com a escravatura.

Palavras essas que, mesmo assim, ainda não chegaram para convencer esse pessoal esclavagista, eclesiástico e leigo…

Vejamos o que escreve Charles Ralph Boxer, no seu livro, A IGREJA E A EXPANSÃO IBÉRICA, Edições 70, Lisboa, 2013:

“Em meados do séc. XVI, a projetada evangelização do reino banto do Congo desmoronara-se, apesar de um começo prometedor (…) Basta lembrar-vos que este desaire se deveu, em certa medida, à grande atração exercida pelo comércio de escravos da África Ocidental, no qual os missionários (ou alguns deles) estavam ativamente envolvidos.” (ob. cit. p. 15)

“Durante quase quatro séculos, a atitude da Igreja face à escravatura dos negros era, se assim se pode dizer, altamente permissiva. A série de bulas papais a autorizar e encorajar a expansão portuguesa, promulgadas a pedido dessa coroa entre 1452 e 1456, deu aos Portugueses ampla latitude no que se refere à subjugação e escravização de quaisquer povos pagãos que encontrassem, se estes fossem “inimigos do nome de Cristo”. Os Portugueses aproveitaram as vantagens destas bulas e em 1460 tinham já desenvolvido um florescente comércio de escravos na África Ocidental.” (ob. cit., p. 40/41)

“ A própria Igreja era, e continua a ser, nos impérios coloniais ibéricos, uma instituição em escala maciça de capital escravo. Não só isso como, durante séculos, os rendimentos do bispo e da instituição eclesiástica de Angola eram financiados pelos lucros do comércio de escravos. Nas plantações de açúcar dos jesuítas (e outras) da América espanhola e portuguesa eram empregados escravos negros, bem como nos trabalhos domésticos, tanto aí como nas Filipinas e na Ásia e África portuguesas. Aliás, quando a Igreja, já tardiamente, denunciou a escravização de raças “civilizadas” como a japonesa chinesa, nunca estendeu esta condenação, quer explícita quer implicitamente, aos negros de África. As bulas papais de 1452-1456, que autorizavam explicitamente a escravatura dos negros da África Ocidental, eram ainda citadas por escrito como canonicamente válidas pelo “iluminado” bispo de Pernambuco, José (…) Coutinho, na sua defesa do tráfico português de escravos africanos, em 1798-1806.” (ob. cit., p. 41)

“Tanto católicos como protestantes encontravam ampla justificação no Antigo Testamento e, em certa medida, no Novo, para a escravatura como instituição. Só com a influência do iluminismo francês, os crescentes escrúpulos dos quacres [dissidentes do anglicanismo] e os esforços dos humanitários ingleses do fim do séc. XVIII, o tráfico de escravos veio gradualmente a ser atacado de uma forma séria, coordenada e com argumentos que se tornariam irrespondíveis. Mas a contribuição do Vaticano para esta nova visão foi praticamente nula até ao ano de 1839 – e muito pouca entre essa data e 1888, quando foi finalmente abolida a escravatura no Brasil.” (ob. cit., p. 45).

Dizia, contudo, o jesuíta António Vieira, no seu Sermão da Epifania, de 1662: “E pode haver maior inconsideração do entendimento, nem maior erro do juízo entre homens, que cuidar eu que hei de ser vosso senhor porque nasci mais longe do sol, e que vós haveis de ser meu escravo, porque nasceste mais perto?”.

Todavia, este sermão “… não impediu Vieira de defender até ao fim dos seus dias, como Las Casas o fizera durante quase toda a sua longa vida, que a melhor forma de assegurar a liberdade dos ameríndios era aumentar a importação de escravos negros da África Ocidental.” (ob. cit., p.45/46).

E o mesmo Boxer citando o investigador jesuíta Nicholas Cushner, numa obra de 1975:

“A versão espanhola do catolicismo, principalmente entre os jesuítas, era particularmente sensível à obediência hierárquica. Aos escravos ensinavam que a sua condição era decidida pelo próprio Deus, que o seu único dever era obedecer aos donos, e que a recompensa disso lhes seria dada no céu.” (ob. cit., p.46)

Continuando: “Este era também o tema dos sermões do padre António Vieira aos escravos, quando comparava os seus sofrimentos nos engenhos de açúcar, durante as colheitas, trabalhando noite e dia, aos de Cristo na cruz.”(ob. cit., p.46)

O investigador português, Arlindo Caldeira, no seu livro, ESCRAVOS E TRAFICANTES NO IMPÉRIO PORTUGUÊS – O comércio negreiro português no Atlântico durante os séculos XV a XIX, Editora A Esfera dos Livros, Lisboa, 2013, escreve sobre a relação entre clérigos, mormente jesuítas, e a escravatura, nos seguintes termos:

“Em todos os espaços do império, entre os séculos XVI e XVIII, não há praticamente nenhuma ordem religiosa que não esteja comprometida, de uma forma ou de outra, com o tráfico de cativos.” (ob. cit., p. 203)

“Em Angola, os próprios franciscanos, apesar do rigorismo da sua regra, aparecem a comprar e a vender escravos.” (ob. cit. p. 204)

“Em Cabo Verde, no início do século XVII, vemos os padres da Companhia de Jesus a enviar escravos para Cartagena das índias como forma de angariarem receitas para o seu trabalho evangélico no arquipélago, que procuravam alargar ao continente africano.” (ob. cit. p. 204)

“Os escravos, que eram a principal mercadoria em circulação em Angola, funcionando mesmo como moeda (na ausência de outra), afluíam à residência dos jesuítas por variadas formas: por doações (“esmolas”) oficiais ou privadas; deixados em testamento por particulares; recebidos dos sobas a título de imposto; e também, pelo menos numa segunda fase, por meio de compra.” (ob. cit., p. 204)

“Resumindo: os padres do Colégio [jesuíta de Angola] assumiam a venda de escravos para o Brasil e pretendiam continuar a fazê-la com os lucros que o mercado e o privilégio da isenção de direitos lhes proporcionavam, mas queriam evitar o “escândalo”, que consideravam, obviamente, prejudiciais aos seus objetivos espirituais.” (ob. cit., p. 208)

Eis a “Igreja dos pobres e dos desvalidos”, armada em vanguarda moral da civilização, e que deveria dar, como eles gostam de dizer, um suposto exemplo de “libertação”, de “misericórdia” e de contributo para o “progresso” dos povos, assim metida em tráficos negreiros lucrativos, à laia dos outros comerciantes leigos, todos eles cristãos, “sob a graça de Deus”…

29 de Setembro, 2013 José Moreira

Será mais uma inspiração?

Numa freguesia da Covilhã, as urnas de voto foram destruídas. Segundo a notícia, a destruição deu-se “depois da missa”.

Querem lá ver que foi o Espírito Santo a fazer mais uma das suas? É sabido que o rapaz tem feito umas asneirolas, tipo engravidar virgens e inspirar papas altamente desaconselháveis a uma estrutura mental estável. Mas não se lhe conheciam intromissões na política… Será que o Pedro Coelho também já conseguiu mandá-lo para a “requalificação”?

29 de Setembro, 2013 Ludwig Krippahl

Novamente o conhecimento.

No post anterior disse que sei não existirem deuses mas que admito poder estar errado. Isto parece ter criado alguma confusão. O Paulo comentou que «Obviamente, se assumo que posso estar errado, não posso dizer honestamente que sei com certeza absoluta. Ou seja, não sei.»(1) e o Molochbaal que «Afinal o Kripphal é kamarada um agnóstico que ainda não saiu do armário»(2). Não é nada disso. Nem é preciso certeza absoluta para saber nem eu sou agnóstico. Mas é melhor começar pelos termos, para evitar mais confusão.

Exceptuando eventuais casos patológicos, todos temos crenças e certezas. A crença é a disposição para aceitar uma proposição como verdadeira. Por exemplo, “a Terra é aproximadamente esférica”. Não é uma afirmação que eu tenha sempre em mente mas, sempre que surja, estou disposto a aceitá-la como verdadeira. Portanto, acredito que a Terra é aproximadamente esférica. A certeza é o grau máximo dessa disposição, tal que já nada poderá aumentar a confiança depositada na afirmação. Tenho a certeza de que a Terra é aproximadamente esférica porque não me restam dúvidas que possam ser reduzidas com mais evidências nesse sentido. Para mim, este assunto já está resolvido e não preciso de mais fotografias, medições ou argumentos confirmatórios. Mas esta certeza não é absoluta. Depende dos dados de que disponho e, por isso, pode ser eliminada por evidências contrárias que me suscitem dúvidas. O facto de não ter dúvidas agora não implica que não as possa vir a ter se novos dados o justificarem. A certeza absoluta é completamente diferente porque é imune às evidências. A minha certeza de que não tenho cobras em casa é razoável e útil porque tenho boas razões para confiar que não há cobras aqui e, graças a esta certeza, não preciso de abrir portas e gavetas com o cabo da vassoura. Mas seria irracional, e até perigoso, se esta certeza fosse absoluta e se nem ver uma cobra no meio da sala me fizesse duvidar. A certeza absoluta é o objectivo último da fé mas é a antítese do conhecimento, da racionalidade e até dos instintos mais básicos de auto-preservação.

O conhecimento, segundo a definição mais comum, é uma crença verdadeira e justificada. É crença porque seria contraditório saber algo que não se está disposto a aceitar; verdadeira porque senão seria erro em vez de conhecimento; e justificada porque acertar por palpite não conta. Não há nada aqui que exija certezas. Excluindo apenas a certeza absoluta, que é injustificável, o grau da crença pode ir desde o mais reservado “parece plausível” até à certeza do “aposto a minha vida e as da minha família nisso” que demonstramos cada vez que andamos de elevador ou a 120km/h na autoestrada. É obviamente incorrecta a noção de que só tendo a certeza é que sabemos ou, pior ainda, de que só com certeza absoluta é que podemos saber. Mas a definição de conhecimento não mostra onde entra a possibilidade de erro. A definição apenas delimita um conceito e, por si só, não tem qualquer alvo que possa falhar: ou a crença é verdadeira e justificada e é conhecimento, ou falha um requisito e não é. Para conciliar a minha alegação de que sei que não existem deuses com a admissão de que posso estar enganado é preciso considerar também a aplicação prática da definição.

É claro que se a crença for falsa, não será conhecimento por muitos indícios que a justifiquem. Dantes acreditava-se que a gravidade era uma força de atracção instantânea e o sucesso dessa hipótese justificou bem a crença. Mas era falsa. Hoje dizemos saber que a gravidade é uma deformação no espaço-tempo e que se propaga à velocidade da luz, o que se justifica por a teoria da relatividade ter sido testada com grande precisão (3). Será verdade? Sem acesso directo à verdade das proposições, nunca podemos excluir a possibilidade de erro. Só podemos, em cada fase, ir determinando que crenças têm melhor fundamento e se houver alguma que se justifica concluir verdadeira, então também se justifica chamar-lhe conhecimento. Se for erro, depois corrige-se, mas não vamos ficar eternamente paralisados na ignorância à espera de conclusões definitivas.

É assim que eu sei que não existem deuses mesmo rejeitando certezas absolutas. A minha crença de que Hórus, Zeus, Odin e Jahvé são personagens tão fictícios como o Pai Natal ou o Tintin está suficientemente justificada para lhe chamar conhecimento. O agnosticismo, além de ser aplicado apenas aos deuses mais populares, sugerindo que se deve a considerações mais sociais do que epistémicas, é inconsistente nos critérios. Os agnósticos aceitam serem conhecimento conclusões como as de que é perigoso ter o esquentador na casa de banho ou que há água em Marte enquanto rejeitam sequer a possibilidade de se saber se a história de um personagem que transforma pessoas em sal e faz milagres é realidade ou ficção.

É legítimo chamar conhecimento à crença que podemos justificar de forma objectiva e adequada. O problema da justificação é complexo em teoria mas, na prática, as diferenças entre crenças justificadas e crenças sem fundamento são normalmente claras. Compare-se, por exemplo, o criacionismo com a biologia ou a astrologia com a astronomia. A crença pode ser ou não uma certeza, conforme considerarmos que já não vale a pena obter mais evidências a seu favor ou que ainda nos restam dúvidas, mas qualquer certeza racional depende da informação de que se dispõe e admite a possibilidade de revisão se surgirem dados contraditórios. Perceber isto ajuda a evitar dois erros comuns. Do lado do cepticismo inconsistente, o erro de defender que não se sabe só porque não se tem a certeza absoluta. Do lado da fé, o erro de defender que algo é conhecimento só porque muitos acreditam com intensidade e sinceridade. O fundamental para considerar que uma crença é conhecimento é a sua justificação objectiva. A certeza é opcional e a fé é irrelevante na melhor das hipóteses ou um obstáculo se impedir a conclusão correcta.

1- Comentário em Acreditar, saber e afirmar. (no Que Treta!)
2- Comentário em Acreditar, saber e afirmar. (no Diário de uns Ateus)
3- Wikipedia, Tests of general relativity

Em simultâneo no Que Treta!

29 de Setembro, 2013 Carlos Esperança

Com papas e bolos se enganam os tolos

O Papa Francisco afirmou hoje, na capela da Casa de Santa Marta, que os cristãos não devem ter medo da cruz.

“Devemos pedir a graça de não escapar à cruz quando ela vier”, afirmou o Papa aludindo à leitura do Evangelho quem que Jesus anuncia a Paixão.

“Não há redenção sem a efusão de sangue, não há obra apostólica fecunda sem a Cruz”.

Diário de uns Ateus – Os povos evangelizados pagaram bem a demência prosélita do cristianismo.

29 de Setembro, 2013 Carlos Esperança

A Morte do Miguel ou as injustiças de Deus

No dia 27 de junho de 2007 o Miguel teve o seu funeral. Caíra no sábado anterior à saída do casebre. Quebrou o fémur e ganhou um hematoma na cabeça. Transportado ao hospital faleceu no dia seguinte.

O funeral foi na terça-feira. O Miguel teve missa, flores que os amigos lhe levaram e os responsos canónicos antes de baixar à cova. Já não o acompanharam os pais e avós, que partiram antes, mas estavam lá os amigos que com ele jogaram à bola na Praceta, colegas da escola primária onde começou e terminou os estudos.

Para os que acusam os jovens de egoísmo foi tocante ver os que vieram de longe, alguns bem instalados na vida, outros à procura de uma oportunidade. E eram muitos.

O Miguel é que não teve vaga. Não conheceu o pai, falecido quando ele ainda não tinha dois anos. A mãe esqueceu-o na amnésia da droga e não o recordou quando partiu sob o efeito de uma dose reforçada.

Os avós recolheram-no. Partiu primeiro a avó e não se demorou o avô. O Miguel ficou aos baldões da sorte, ao abandono, não lhe faltando os pontapés da vida nem a companhia de outros desgraçados.

Tinha 31 anos e mantinha os olhos de criança no rosto já cansado. Passou fugazmente por várias drogas mas foi no álcool que se fixou, em doses cada vez mais vastas. Se os amigos o saudavam, sorria com gratidão. E não deixou que lhe virassem as costas, foi-se afastando entre carros que arrumava e garrafas de cerveja que consumia.

Ainda teve tempo para fazer um filho. Foi amado. A mulher quis levá-lo para o cuidar, mas não quis ser fardo. Andou por aí, sem querer ser pesado, sem se queixar, a desfazer o fígado e a vida, a acelerar para o fim, com um sorriso que guardou para os amigos.

Na morte teve a mulher que o amou, vestida de preto, e muita gente: um arrumador de carros no intervalo da ressaca, o diretor de um estabelecimento de ensino superior, o dono do café, jovens que após os cursos foram pela vida mas voltaram à Praceta para dizer adeus ao Miguel e levar-lhe as primeiras flores que recebeu. E todos nos sentimos tristes, com vergonha de sermos felizes.

Chamava-se Luís Miguel Neves Caldeira, de seu nome. Era tudo o que tinha com a roupa que trazia e um velho rádio de que fez testamento oral. Dele só resta o rádio e o raio da nossa incapacidade para criar um mundo mais justo.

Vi o edital que anunciava a missa do 7.º dia para as 18H30, seis dias após a morte, pois o 7.º dia é quando um padre puder. Talvez a missa fosse pela remissão dos pecados de Deus. Para que outra coisa poderia servir?

28 de Setembro, 2013 David Ferreira

A César o que é de César

Não sei o que mais me aborrece no abominável César das Neves. Se aquele ar insosso de cordeiro manso desmamado a hóstia e água benta, se o seu discurso bolorento impresso em pergaminhos que o progresso civilizacional se encarregou de apodrecer. Ambos me provocam uma náusea profunda e, a julgar pela avalanche de insultos com que as suas crónicas são mimadas, sou apenas um de muitos.

Em longa entrevista ao Jornal de Notícias de hoje, a personagem revela toda a sua ideologia reaccionária, que impressiona não tanto pela incapacidade de análise objetiva e lúcida sobre as realidades sociais, mas sobretudo pelos motivos que levam a que seja dado tanto relevo a esta caricatura antropóide nos meios de comunicação social.

Abstenho-me de comentar as suas análises académicas acerca de economia, as quais, não tendo formação ou conhecimentos que considere consistentes nesta área, e sendo mantido, como a maioria dos cidadãos, num permanente limbo inconclusivo pelo excesso de propaganda política e opinião ideológica facciosa que deliberadamente minam o juízo e confundem o espírito crítico, deixo à consideração de quem domina a matéria.

É em todo o esplendor que o pusilânime vaticinador se solta por momentos da cruz, oxigena as chagas e dá folga ao cilício, para se apresentar à nação como o profeta do retrocesso civilizacional, redimindo-se, como sói, em nome da salvação a que tanto aspira. Critica o que ele designa de certas elites que se manifestam nas ruas única exclusivamente por interesses partidários e institucionais, onde se incluem professores, funcionários públicos e, pasme-se, até médicos, esquecendo-se que faz parte de uma obscura elite fidalga que perdeu significância após abril e que tem vindo, aos poucos, a conquistar terreno, em estreito conluio com uma determinada hierarquia católica, alcançando um peso enorme durante a década de noventa do século passado e cuja ideologia é hoje em dia transversal a todas as mais importantes instituições nacionais, com tiques tirânicos mas sempre abençoados, das forças de segurança às faculdades, dos tribunais à comunicação social.

Revela ao mundo que nestas hipócritas manifestações de indignação social não estão presentes os verdadeiros pobres (e como gostam os senhores, ele e o seu dono, dos pobres!), seja qual for o critério que o Espírito Santo que lhe anima a caixa craniana utiliza para definir a pobreza, mas apenas os que ficaram com a barriga um pouco menos cheia, esses que, imbuídos do intrínseco espírito parolo nacional, aceitaram compulsivamente, salivando, a galinha mais gorda que a da vizinha, que lhes ofereceram com um verdadeiro e honesto sorriso capitalista.

Um bom reaccionário, saudosista do sal e do azar e da vergastada no lombo com verga de cerejeira, não dispensa a caridade com que alivia o peso da consciência, por isso gosta tanto de pobrezinhos, mas dos que não se manifestam nem se revoltam, por tal ser pecado aos olhos de quem faz criação de carneiros obedientes, alimentados a esperança e a “Sim, senhor! Ai, senhor!”. Por isso propõe, inteligentemente, mais um resgate, que é como quem diz, mais uma fornada de pobres para alimentar as pias almas caritativo dependentes, assim como as filas de bocas cariadas que se acotovelam, à míngua de sopa, em frente às igrejas, a ver a cruz ao fundo da fila.

Já em final de entrevista, a ressacar as dores da crucificação, prega-se de novo à cruz e sangra as chagas, preparando-se para traduzir a mensagem da pomba que, entretanto, lhe voltara a pousar no leigo frontispício por escanhoar.

Interrogado sobre as observações do novo Papa relativamente ao aborto e à homossexualidade, opina, como bom apologista cristão, que tem que se saber interpretar bem o sentido das coisas e que este Papa vem de paragens diferentes, de uma cultura diferente. Vê-se, e sabemo-lo, que não partilha da mesma opinião, mas um bom carneiro nunca critica o pastor. Então divaga. Aceita a descarga teológica, mas não engole. Cospe e deita fora, ficando apenas o sabor a incenso e mirra a escorrer-lhe dos beiços.

Continua para bingo e doutrina que matar uma criança no seio da mãe não é uma coisa que possa ser boa em qualquer circunstância. Como se as próprias mães não o soubessem ou o não sentissem. Como se as mulheres abortassem alegremente e por prazer. Como se o ato medicamente assistido fosse pior que o alguidar de uma qualquer vidente ou bruxa em part time de parteira. Remata forte, em jeito de remissão dos dislates, e marca golo na própria baliza: “Que essa desgraçada, depois de ter feito isto, tenha de ser acolhida e acarinhada, com toda a certeza.” Essa desgraçada!… Diz essa, a distanciar-se, logo a julgando como desgraçada, a substituir-se ao Mestre. Sabemos hoje que o excesso de benzeduras conduz à artrose cerebral…

Para finalizar, diz que a homossexualidade é um desvio sexual que está a tentar fingir que não é… E que fosse? Que tem esta gente contra quem nasce diferente? Ou contra quem escolhe ser diferente? Não são estas pessoas dignas do amor do seu Senhor que dizem ser o amor em estado puro, seja lá o que isso for? Ou do respeito dos seus concidadãos e semelhantes? Que medo reprimido afeta assim tanto esta gente ultraconservadora? E porque não os vejo serem tão diligentes na crítica aos pederastas que abundam na instituição que tanto defendem cegamente? Não considerarão eles a pederastia um desvio sexual? Ou será que somente dentro de uma sotaina se pode aceitar a lascívia, porque santificada?

Dizem que disseram, que disseram, que alguém disse, que Jesus disse: Dai, pois, a César o que é de César e a Deus o que é de Deus. Demos, pois, nós também, a César o que lhe pertence – um profundo e gigantesco desprezo.

28 de Setembro, 2013 Carlos Esperança

A falta que faz o sinal da cruz é como a viola no enterro

O Papa Francisco encontrou-se hoje com os participantes no Congresso Internacional de Catequese desafiando-os a percorrer “novas estradas” para anunciar o Evangelho nas periferias, às crianças que não sabem fazer “sinal da cruz”.

Na Aula Paulo VI, no Vaticano, o Papa pediu aos catequistas para não terem medo de correr riscos, afirmando que é preferível ter um acidente do que ficar doente.