Graças a Deus
A noite aborrecia. Aborrecia como aborrecem todas as noites que não sabemos como preencher com o que verdadeiramente somos o que os outros tanto preencheram de nós com o que verdadeiramente não são. Um grupo de amigos. Ou um grupo de colegas que se tornaram amigos devido a circunstâncias sazonais. Porque a amizade também se faz de, da ou para a oportunidade. Um grupo apenas, igual a tantos outros, reunido, a descomprimir a tensão acumulada de mais um intenso dia de trabalho. E ao redor de todos, bamboleante, alheado de tudo e ansiado por todos, um catártico e desenfreado baile de copos em intenso rodopio, a competirem com a lua, ora meios, ora cheios, mas nunca completamente vazios, a substituírem a noite estática. Como se não houvesse amanhã. Como se nós, os bailarinos, não quiséssemos de novo o Sol, fartos de luz, cansados do dia passado ou de nos sentirmos cansados do dia seguinte que sabíamos inevitável.
As línguas entaramelam-se com o bailarico de sílica espirituosa e a conversa começa a destoar da hipocrisia socialmente aceite como modo de sobrevivência para a libertação do individualismo reprimido do que seriamos sempre se fossemos sem bloqueios socioculturais.
– Estou farto destes cabrões! – atira um.
– Caga nisso. – diz um outro – Vamos é beber uns copos e curtir um pouco, que bem merecemos.
A terra é estranha. Tudo é estranho e diferente. Igual, mas diferente. O clima, a paisagem, o ritmo. As pessoas…ah, as pessoas… As pessoas, essas, são sempre iguais, independentemente do vestuário ou da linguagem. São apenas pessoas, envolvidas em panos que as protegem do clima ou de si próprias, adornando-as de um determinado status, a comunicarem por necessidade.
Antecipo um pé de dança, mas tropeço. Tenho pés de gesso e a gravidade dificulta-me a dança que a tenta contrariar.
– Graças a Deus que tudo correu bem! – a voz rouca atinge-me sem que a previsse, familiar mas incompreensível.
– Graças a nós! – brindo, a contrariar sem o pretender, a ser eu.
Silêncio breve.
– A nós! – alguém berra. E todos brindamos, como se fosse necessário.
E tudo esquecemos relembrando, celebrando. O amanhã será sempre mais reconfortante que o ontem, se o esperançarmos, e o hoje é o que fazemos dele sem pensar muito nisso.
O baile, entretanto, decorria como outro baile qualquer, tímido a princípio, logo decidido, finalizando introspetivo, como que a morrer aos poucos para dentro de nós, envenenado pelos aditivos sensoriais que sentimos necessários quando deixamos de conseguir sentir sempre que somos, quase inevitavelmente, o que os outros pretendem que sejamos, como se nós não fossemos também outros para os que não somos. O cansaço, contudo, haveria de nos deixar ser. Apenas ser.
– Tenho saudades de África… – desabafa o Pedro.
Olho para ele, sorrindo, à procura de um olhar. Um olhar que só reconheci espelhado no reflexo do copo meio vazio de lua-cheia que embalava entre os dedos, como se de uma máscara de oxigénio se tratasse.
– Eu também, sabes. – anui – Já lá vivi, em Angola, em Nova Lisboa, agora Huambo. Lembro-me de tudo como se tivesse sido ontem. Há algo de África que fica em nós e que não se consegue bem explicar…
Pedro sorri, em meia-lua. Compreende-me. Ambos viramos o mundo e o pior que a humanidade tinha para oferecer nos últimos anos. Em vários continentes. Em terras estranhas com pessoas iguais. E sabíamos.
– Deves ter comido poucas pretas enquanto lá estiveste, deves… – interjeiciona o que dera graças a Deus.
Pedro sorri, em quarto minguante. Roda o copo com os dedos como que a desfazer nele o luar que o seu olhar já não conseguia iluminar.
– Comi. Por acaso comi.
Os olhares direcionam-se para Pedro, mais rápidos que o raciocínio. Os lábios dilatam-se e os sorrisos antecipam o alarde coletivo.
– Conta lá! Conta lá!
– Sabes… – continua Pedro – Uma vez fui com uma. Tinha ido à discoteca e aconteceu. Saí com ela e fomos passear para a praia.
– E o que é que lhe fizeste?
– Pá, nada demais… – responde Pedro, ensimesmado – Eu já estava com os copos e ela também. Chupou-me apenas.
Os sorrisos replicam-se entre os olhares que a testosterona atraíra.
– Ganda maluco! E como é que foi? A tipa chupava bem?
Pedro sorri também, aparentemente contagiado, a camuflar o remorso na parvoíce alheia.
– Dizem que elas são quentes como o caraças! – ouve-se alguém.
Pedro pousa o copo, mais cheio de noite que de espirito.
– Sabes… – diz – as gajas de lá, as que andam ao ataque, chupam sempre até ao fim.
– Engolem tudo? Ah gandas malucas! Eu sempre disse, pá, as pretas são as mais quentes!
Os olhares cruzam-se a assentir a masculinidade e atiçam ainda mais a balburdia.
Pedro olha para mim enquanto as vozes do baile faziam e aconteciam e a noite bocejava enfastiada.
– Sabem porque é que elas chupam até ao fim? – dispara Pedro, sem fazer pontaria.
Os olhares silenciam subitamente, não suspeitando o motivo da interrogação.
– Porquê? – interrogam os mais curiosos.
– A miséria lá é muito grande, sabem. E como o esperma é nutritivo, é uma das formas que elas arranjam para matar a fome…
Silêncio súbito. Há fronteiras morais que nem a mais estupidificante carraspana se atreve a transpor.
– Este mundo é lixado. – ouve-se ao fundo, sumido.
O baile, entretanto, morrera, deixando a todos uma incómoda sensação de vazio.
– Graças a Deus, ao menos não vieste de lá com nenhuma dessas doenças esquisitas… – escuta-se, por entre o orvalho que começava a cair com abundancia.
Pedro olha para mim, de soslaio, e encara o agradecido.
– Sim, – diz – dêmos graças a Deus para que a fé que temos possa servir de salvação para uns e de muito alimento para outros…
E retirou-se da festa como se nunca tivesse sido convidado.
Para trás ficou-nos apenas a noite a envelhecer aos poucos os restos do que julgávamos ter sido até ali.