Por
Kavkaz
“Quando a igreja inventou o pecado, inventou um instrumento de controle. Não tanto das almas, porque a igreja não importa nada com as almas. Um instrumento de controle dos corpos. Aquilo que perturba a igreja católica é o corpo. O corpo. O corpo com sua liberdade, o corpo com seus apetites, o corpo com suas ansiedades e é isto que perturba. Precisamos de deus, mas precisamos dele pra que? Quer dizer, nunca o vimos. Tudo aquilo que se diz que é dele foi escrito por pessoas.”
José Saramago
A ICAR assume-se como fonte de moralidade. Aliás, sempre foi assim, mesmo com Bórgias e afins. A história do Vaticano está repleta de episódios vergonhosos. Ainda há quem pense que agora as coisas são diferentes, que os tempos são outros. Parece que não, a julgar pelas últimas notícias. O Vaticano continua a ser, afinal, um antro abjecto e mal frequentado. Mas estes biltres são, precisamente, os que pregam que a homossexualidade “é abominação”.
Ninguém lhes nega o direito à livre orientação sexual; mas podiam, ao menos, calar-se um pouco.
O padre Anselmo Borges defende que não há demónios, que «Os rituais de exorcismos não têm justificação» e que o diabo é apenas «um símbolo personificado de todo o mal» – como afirmou aqui o Ludwig Krippahl.
A vantagem do catolicismo, extinta a Inquisição e perdidos os Estados pontifícios, está na ausência do braço secular, que permite a cada um acreditar no que quer e, conforme a evolução das sociedades, ter uma explicação diferente, por parte do clero, para exóticos versículos bíblicos, sem o risco de acabar incinerado em vida.
O que surpreende é a existência de exorcistas em várias dioceses de Portugal e a recente nomeação de mais oito exorcistas para a diocese de Madrid pois o cardeal Rouco Varela garante que tem aumentado o número de demónios. Aliás, no Vaticano, onde andam à solta, como é do conhecimento público e foi confirmado pelo exorcista-chefe, o padre Gabriele Amorth (na foto), continuam a fazer-se exorcismos.
Surpreende, não a pertinácia do Diabo em atacar as almas, pois a vida está difícil, até no Inferno, mas o facto de os possessos serem sempre os crentes. A única moléstia contra a qual todos os agnósticos, céticos, ateus e livres-pensadores estão eficazmente vacinados, é a possessão demoníaca.
O Demo, na sua fraqueza perante Deus, sabe bem que quem duvida do último também não acredita em si. Apenas inquieta a superstição que continua a ser divulgada por quem tinha obrigação de ser agente do progresso e da libertação dos povos – a Igreja católica.
É difícil perceber o mimetismo que o Islão exerce no imenso exército de padres, bispos, monsenhores e papas que enxameiam vários continentes.
Alguma vez alguém se questionou o porquê de as manifestações do sobrenatural apenas acontecerem a quem tem predisposição para crer nelas? É que a explicação dessas manifestações está tão simplesmente nessa constatação.
O Anselmo Borges defende que não há demónios, que «Os rituais de exorcismos não têm justificação» e que o diabo é apenas «um símbolo personificado de todo o mal». Concordo. O mafarrico e companhia são apenas personagens inventados para ilustrar alguns conceitos humanos. Eu até iria mais longe nisto. E irei. Mas, primeiro, a parte que me aborrece.
O evangelho de Marcos relata que Jesus se deparou com «um homem dominado pelo demónio», que «Jesus falou ao demónio que existia dentro dele e disse: Sai, espírito mau.[…] Como te chamas?, perguntou Jesus. Exército, porque somos muitos dentro deste homem». Então «os demónios pediram com insistência que não os expulsasse para qualquer terra distante» e Jesus mandou-os ir com os porcos: «Então, os espíritos maus saíram do homem e entraram nos animais. A vara inteira de dois mil porcos lançou-se pela encosta íngreme do monte e caiu lá em baixo no lago, onde se afogou.»(Marcos 5, 1-13). O Anselmo Borges refere esta passagem na Bíblia mas descarta-a alegando que «Se é certo que Jesus, nos Evangelhos, aparece expulsando demónios, isso deve ser compreendido no contexto das crenças da altura. Hoje, sabemos que se tratava de doenças do foro psiquiátrico»(1). Isto é treta.
Na parábola do bom samaritano, um judeu é assaltado e espancado, passa por ele um sacerdote e um levita que o ignoram mas o samaritano ajuda-o e trata-lhe das feridas. Hoje todos conhecemos a expressão “bom samaritano” e, para muita gente, fica desta história a ideia que os samaritanos eram tipos impecáveis. Mas se compreendermos a parábola «no contexto das crenças da altura» a mensagem é bem diferente. Os samaritanos e os judeus davam-se como o cão com o gato e o ponto principal da história, sobre ajudar o próximo, é o judeu ter sido ajudado pelo samaritano, que era a última pessoa de quem se esperaria tal coisa. Compreender o texto «no contexto das crenças da altura» é interpretar o texto de acordo com as expectativas e premissas dos seus autores e contemporâneos. Isto, concordo, faz todo o sentido. Mas o que o Anselmo Borges quer fazer é precisamente o contrário.
Se compreendermos o relato do exorcismo «no contexto das crenças da altura«, a interpretação tem de ser a de que Jesus enfrentou uma carrada de demónios, os expulsou para os porcos e os atirou pela ribanceira abaixo. Era isso que queriam dizer quando escreveram este relato era isso que, na altura, percebiam quando o liam. O problema do Anselmo é que, à luz do que sabemos hoje, isto é um disparate. Como o Anselmo não quer admitir que a Bíblia tem disparates, faz esta finta de dizer que interpreta o texto «no contexto das crenças da altura» para defender que não há lá demónios. É um truque muito usado pelos teólogos. Primeiro dizem que não se pode interpretar o texto literalmente porque é preciso considerar o seu contexto cultural. Isto apesar do contexto cultural ser o da interpretação literal que rejeitam. Depois alegam que o texto defende o contrário do que lá está escrito porque que é alegórico ou metafórico. Finalmente, safam-se de explicar como é que a alegoria ou metáfora que alegam lá estar diz o contrário da letra do texto. Neste caso em particular, não é nada evidente como o relato do exorcismo e da morte de dois mil porcos pode ser uma alegoria ou metáfora para o aconselhamento psicológico ou o tratamento de doença psiquiátrica.
Eu concordo que a interpretação literal do Génesis ou deste exorcismo resulta em relatos que são claramente falsos. Eu concordo que é útil interpretar os textos no seu contexto cultural para perceber o que o autor queria dizer. Mas é desonesto invocar esse contexto cultural para afirmar que o texto deve ter uma interpretação completamente diferente daquela que o próprio autor lhe dava e depois nem sequer adiantar nada acerca dessa interpretação para que se possa, pelo menos, avaliar se faz algum sentido.
Terminado o desabafo, queria voltar à proposta do Anselmo de que o diabo será apenas «um símbolo personificado de todo o mal». Ou seja, apesar do seu protagonismo nalguns relatos bíblicos, é apenas um personagem fictício que dá corpo a anseios e preocupações abstractas dos autores dessas histórias. Estou inteiramente de acordo. Isto faz todo o sentido quando consideramos os muitos exemplos por todas as religiões, como Afrodite, Zeus, Odin, Shiva, Kali e assim por diante. Mas eu vou um pouco mais longe, dando aquele passo pequenino que separa o Anselmo do ateísmo. Também Deus é apenas «um símbolo personificado» das características que lhe atribuem. É um personagem fictício que simboliza coisas boas, como bondade, amor, justiça e afins que, tal como o mal, são mais fáceis de comunicar, pelo menos antes de se começar a tentar compreendê-las, se as imaginarmos como pessoas.
1- Anselmo Borges, O diabo, possessões demoníacas e exorcismos
Em simultâneo no Que Treta!
Embora tenha recorrido mais ao fogo do que à água, prefira a incineração ao banho e se dedique ao charlatanismo mais do que à ciência, a ICAR está longe da boçalidade do islão.
Os padres da ICAR, libertos da tonsura que os marcava como propriedade da Empresa, à semelhança do ferro que as ganadarias usam, os padres – dizia -, comportam-se hoje como pessoas normais enquanto não são solicitados a debitar os horrores eternos que o patrão reserva aos hereges, sacrílegos e apóstatas.
Aliás, a civilização atenuou-lhes o ímpeto purificador que, na ânsia de salvar almas, os levava a estorricar os corpos. E, assim, foi esmorecendo o desejo de converter ímpios à custa da tortura e a pia intenção de espalhar a boa nova eliminando relapsos.
A ICAR não é o bando de santos que fabrica com desvelo, a máquina de obrar milagres oleada com emolumentos das dioceses que submetem bem-aventurados à canonização, é uma empresa que vive do negócio da fé, da fábula de Cristo e do medo do Inferno.
Pior do que o clero católico são os judeus de trancinhas à Dama das Camélias, pastores evangélicos dos EUA e os mullahs. Pior que os bispos espanhóis são os talibãs do islão e só os dois últimos Papas pediam meças aos Ayatollahs.
Claro que a tara das religiões monoteístas está no coração dos mais pios, na cabeça dos prosélitos e na ação dos cruzados obsoletos que querem expandir a fé. É por isso que a ICAR conta na galeria dos bem-aventurados, alguns com milagres averbados e lugar reservado nos altares, sórdidas criaturas de escassa virtude e duvidosa santidade.
Stepinac e Pavelic, Escrivà e Franco, Videla e Pinochet, Salazar e Moussolini, Bernard Law e Hans Hermann Groer, Marcincus e Rouco Varela, Voityla e Rätzinger, são grãos da seara arroteada pela ICAR.
Stepinac esteve ligado ao campo de extermínio de Jasenovac, comandado pelo franciscano Miroslav Filipovic, o Frei Morte no lúgubre testemunho dos sobreviventes ortodoxos sérvios. JP2 canonizou o carrasco católico e desprezou os mártires sérvios vítimas do campo de horror de Jasenovac.
É esta gente, este bando de fanáticos e assassinos que a Igreja foi procurando branquear como se fossem beneméritos ou, pelo menos, cidadãos recomendáveis.
Esperemos que o Papa Francisco, com o saber acumulado dos jesuítas e a experiência da ditadura com que conviveu, saiba abdicar da superstição e favorecer os rituais inofensivos que perpetuam a Igreja Católica Apostólica Romana (ICAR).
O Diário de uns ateus é o blogue de uma comunidade de ateus e ateias portugueses fundadores da Associação Ateísta Portuguesa. O primeiro domínio foi o ateismo.net, que deu origem ao Diário Ateísta, um dos primeiros blogues portugueses. Hoje, este é um espaço de divulgação de opinião e comentário pessoal daqueles que aqui colaboram. Todos os textos publicados neste espaço são da exclusiva responsabilidade dos autores e não representam necessariamente as posições da Associação Ateísta Portuguesa.