A Ivone ou de como o ódio se transformou em amor – Crónica de fim de semana
Em meados do século passado transbordava a fé nas aldeias de Portugal. O terço era, em Maio, uma obrigação quotidiana, exortada pela Irmã Lúcia, a rogo da Senhora de Fátima. Agradecia-se a ausência de Portugal na guerra de 1939/45 e o Salazar que a Providência nos designou.
Ninguém suplicava já o regresso do rei, implorava-se a conversão da Rússia.
As festas religiosas tinham data certa e regozijo garantido com um bailarico profano que amofinava o padre e alvoroçava a juventude e o acordeonista. As procissões reuniam os paroquianos e as missas diárias tinham boa clientela apesar da faina agrícola. As mulheres arranjam sempre tempo para a devoção por mais tarefas que lhes caibam ou solicitações domésticas que não possam alijar. Até nas rezas substituem os maridos e os filhos.
No mês de Maria o terço não se resumia aos cinco mistérios e respectivos padres-nossos e ave-marias. Havia cantoria litúrgica para seduzir o divino e desimpedir o caminho do Céu, quando a hora chegasse, à alma dos executantes. Para isso servia a igreja e para evitar que a fé desse lugar ao sono domiciliário onde, à lareira, chegava no primeiro mistério.
Ao excesso de fé, à pressa das orações ou a ânsias mais profanas se deveu a velocidade com que umas raparigas da aldeia passavam pela igreja, sem parar a tempo, indo cair na vinha em frente. Não lhes escasseava compaixão pelo martírio do seu Deus a avaliar pelos gemidos.
A aldeia murmurava que fora enganada a Pedra, desonrada a Ivone e muitas já não estavam como deviam. E não sabiam as pessoas, da missa, metade.
Andavam muitas na boca do mundo que é como quem diz nas conversas de quem gosta de falar da vida alheia. Honrava-se quem casasse e perdiam-se as enjeitadas.
Intimidaram-se com ameaças alguns mancebos e cuidaram de arranjar papéis, limitaram-se outros a ouvir gritos de coitanaxas ensinadas à porrada a conter o alvoroço e as hormonas. Mas, para as que encheram, vinha tarde a pedagogia e o sermão.
O Zé Ferreira preferiu a PSP ao enlace, e abalou para Lisboa deixando prenha a Ivone. Acabou polícia e casado, sem a Ivone que o pai prometera matar. Assustei-me ao escutar a ameaça e os nomes que lhe gritava para que a aldeia ouvisse. Adivinhei as lágrimas e a vergonha da cachopa, enganada e cheia, dentro das paredes da casa térrea.
Nem todas encheram mas foram sete as que em Fevereiro do ano seguinte deram à luz, unidas, umas, pelos santos laços do matrimónio e pela obrigação de continuarem a parir, ficando outras com a vergonha e um único filho.
Quando nas férias grandes voltei à aldeia roía-me a curiosidade e o medo de que a Ivone tivesse acabado às mãos do pai, vítima da honra que soía lavar-se. Passei várias vezes à porta para saber se vivia. Não a via e temi o pior. O Zé Ferreira – disseram-me – abalara para Lisboa.
No dia em que tive a certeza de que a Ivone vivia rejubilei. Era uma criança sensível que não me conformava com a morte embora soubesse que as famílias tinham, nesse tempo, códigos de honra que não permitiam que alguém fizesse pouco das filhas sem vingarem a afronta. Se a desgraçada tinha irmãos cabia a estes sangrar o machacaz, caso contrário a rapariga era posta na rua, levava uma malha ou as duas coisas.
A caminho da Fonte do Vale não vi a Ivone, mas, nos braços do avô, sentado na soleira da porta, uma criança de meses era embalada ternamente. Compreendi então que a vida vale mais do que os preconceitos e que uma criança é capaz de transformar em amor o ódio que explode em momentos de exaltação e de vergonha.
In «Alembranças» (A publicar)
Perfil de Autor
- Ex-Presidente da Direcção da Associação Ateísta Portuguesa
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- Colaborador do Jornal do Fundão;
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- Colunista do semanário «O Despertar» - Coimbra:
- Autor do livro «Pedras Soltas» e de diversos textos em jornais, revistas, brochuras e catálogos;
- Sócio N.º 1177 da Associação Portuguesa de Escritores
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