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Mês: Janeiro 2013

12 de Janeiro, 2013 Carlos Esperança

DE NATURA DEORUM (3 de 3)

Por

João Pedro Moura

O TOTALITARISMO

As religiões monoteístas são altamente totalitárias.

Remontam a uma época em que a unidade do género humano, para tais religionários, estava dividida em duas espécies de gente: os que estão do nosso lado e os que não estão; os que seguem a doutrina oficial e os outros…

Vejamos 3 conceções paradigmáticas, no Novo Testamento, acerca do destino reservado aos outros… 

1- Marcos 16:16:

“Quem crer e for batizado será salvo; mas quem não crer será condenado.“

São as palavras finais do Cristo “ressurreto”, aos seus apóstolos. A mensagem definitiva e escatológica.

Será condenado porquê???!!! Alguém fez um mal, ao não crer na doutrina oficial???!!!

Objetivamente, não há mal nenhum, em não crer, mas, para deus e seu ectoplasma filial, Jesus Cristo, pejado de misericórdia e amor infinitos à humanidade, haverá condenação infernal aos que, simplesmente, não creram na treta divina, porque deus não os predispôs para tal…

2- João 15:5, 6:

“Eu sou a videira e vós os ramos; quem está em mim, e eu nele, esse dá muito fruto; porque, sem mim, nada podeis fazer.

Se alguém não estiver em mim, será lançado fora, como o ramo, e secará; tais ramos são recolhidos, lançados ao fogo, e ardem.”

Ora aqui estão, também, as razões do aparecimento da Inquisição e da sua pena suprema – o braseiro purificador dos malditos…

Novamente, o Cristo, esse paradigma do “amor”, da “bondade” e da “misericórdia”, a afirmar o que acontecerá a quem não estiver “nele”…

… A morte na brasa

3- Mateus 25:31-46

“31- E quando o Filho do homem vier em sua glória, e todos os santos anjos com ele, então se assentará no trono da sua glória;
32- E todas as nações serão reunidas diante dele, e apartará uns dos outros, como o pastor aparta dos bodes as ovelhas;
33- E porá as ovelhas à sua direita, mas os bodes à esquerda.
34- Então dirá o Rei aos que estiverem à sua direita: Vinde, benditos de meu Pai, possuí por herança o reino que vos está preparado desde a fundação do mundo;
(…)

41- “Então dirá também aos que estiverem à sua esquerda: Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno, preparado para o diabo e seus anjos;
42- Porque tive fome, e não me destes de comer; tive sede, e não me destes de beber;
43- Sendo estrangeiro, não me recolhestes; estando nu, não me vestistes; e enfermo, e na prisão, não me visitastes.
(…)

46- E irão estes para o tormento eterno, mas os justos para a vida eterna.”

E, para terminar o desiderato escatológico do amor pela humanidade, temos o “Dia do Juízo Final”, a “Dies Irae”: os “maus”, quero dizer, todos aqueles que não seguiram o Cristo, tais como ateus, indiferentes, religionários de religião errada, etc. seguirão para o “fogo eterno”; os virtuosos da adoração divina seguirão para o jardim da celeste corte…

4- É preciso um alto grau de totalitarismo, um inimaginável ódio pela humanidade, um maníaco pendor discriminatório, para não só não aceitar todos aqueles que não seguiram “o guia”, como também ordenar a sua condenação ao “fogo eterno”!

5- As religiões monoteístas, a judio-cristã e a islâmica, constituem o maior totalitarismo da História!!!

Patenteiam uma tamanha conceção de unicidade individual e social, que as leva a reprimir, brutalmente, qualquer dito ou feito, considerado dissonante com a doutrina.

Não há paralelo, na História da Humanidade, de semelhante totalitarismo!

Uma atrocidade! Uma crueldade! Um enorme ódio pelo outro e pelo diferente!

6- O que vale é que a “Dies Irae” já passou, com toda a sua infalibilidade:

a) Mateus 24:34:

“Em verdade vos digo que não passará esta geração sem que todas estas coisas aconteçam. “

b) Lucas 21:32

“Em verdade vos digo que não passará esta geração até que tudo aconteça.“

CONCLUSÃO

            Deus é uma projeção mental dos explorados, oprimidos, ignorantes, os desejosos de saber depressa a causa das coisas, os medrosos, os inquietos…

            Seria difícil, nos tempos primitivos, ver-se o faiscar dos relâmpagos, o trovão ribombante, as tempestades, os sismos e demais manifestações naturais, sem ficar apreensivo com a causa e sem idealizar uma entidade medonha, que estaria a supervisar a vida…

Depois, veio o clero, erigido em autoridade suprema e indistinguível do poder político, a debitar o preceituário doutrinário da redenção salvífica e a preconizar a mansuetude ovelhum, para manter a paz dos poderosos e o pasto fácil dos mesmos…

Depois, edificou-se a aliança entre o trono e o altar, para melhor garantir as tutelas dum e doutro e continuar a preservar a pacatez asinina do rebanho, em ordem para a melhor condução ao aprisco divino…

… Até um dia…

11 de Janeiro, 2013 Ludwig Krippahl

Tertúlia em Alvalade, parte 2.

A conversa foi moderada pelo João Passeiro, a quem aproveito para agradecer o convite, e contou também com o Joaquim Carreira das Neves, sacerdote franciscano e professor jubilado da Universidade Católica, e o Paulo Borges, budista e professor de filosofia na Universidade de Lisboa. Mas, depois da apresentação que cada um de nós fez, o motor principal foi a assistência. A sala era pequena, o que propiciou uma conversa mais interactiva do que tenho encontrado nestas coisas. Foi agradável ter podido rematar quase todas as pontas; normalmente os limites de tempo obrigam a seleccionar só algumas questões e passar as outras ao lado ou por alto, mas desta vez foi mais calmo. Apenas duas questões, que se prolongaram um pouco além do final da tertúlia, me pareceu terem ficado a meio.

A Maria Maia, poetisa e escritora, disse que a ciência é muito humilde e, por isso, não afirma nada acerca de Deus. Pode parecer humilde se a compararmos com a arrogância com que as religiões afirmam certezas acerca do que nada sabem, mas parece-me melhor deixar de lado a dúbia virtude da humildade e dizer apenas que a ciência é realista. Como somos falíveis e temos informação incompleta, qualquer ideia acerca da realidade pode não lhe corresponder. Tanto na ciência como nas religiões. Por isso é preciso avaliar hipóteses por critérios que tendam a minimizar os erros e a maximizar as probabilidades de os detectar e corrigir. Por exemplo, consistência com os dados e com outras hipóteses fundamentadas, capacidade de explicar e fazer previsões testáveis e dependência do menor número de premissas por testar. Isto não tem nada que ver com humildade, não depende da natureza das entidades acerca das quais se formula hipóteses – é uma avaliação das hipóteses e não um juízo acerca das entidades – e exige sempre a comparação de hipóteses alternativas. Uma hipótese não é seleccionada por ser “A Verdade”, em absoluto, mas por ser a que melhor preenche aqueles critérios.

A ciência tem mesmo de dizer muito acerca de Deus, e restantes deuses, porque sempre que a ciência propõe uma hipótese como verdadeira está necessariamente a declarar falsas todas as que com esta não sejam compatíveis. Por exemplo, quando descreve a órbita de um satélite está também a afirmar que são falsas as hipóteses de um milagre levar o satélite para Júpiter, Deus roubar o satélite, Deus comer o satélite, Deus transformar o satélite num molho de brócolos e assim por diante. A epidemiologia exclui a hipótese de curas milagrosas. As leis da termodinâmica põem de parte qualquer intervenção divina. A teoria da evolução implica que nenhum deus interveio na origem das espécies. Esta posição não é arrogante porque a ciência escolhe a hipótese com mais fundamento objectivo e está sempre aberta a mudar de ideias se as evidências o justificarem. Não invoca revelação divina nem alega infalibilidade. Mas quando dizemos que uma hipótese é verdadeira também negamos como falsas todas as hipóteses incompatíveis. Não o fazer seria inconsistente.

Isto estende-se mesmo à hipótese de existir Deus ou qualquer outro deus. A ciência diz que algo não existe sempre que as hipóteses que não o incluam sejam mais plausíveis do que aquelas que o incluem, segundo os critérios da ciência. É o que faz acerca do monstro de Loch Ness, dos marcianos e até de seres alegadamente sobrenaturais que alguns insistem estar fora do alcance da ciência, como fadas, duendes e deuses criadores do universo. Com a informação de que dispomos, pelos critérios da ciência, é pouco plausível que o universo tenha sido criado por um deus que é pai, filho e espírito santo, que esperou quase dez mil milhões de anos até criar a Terra e depois mais quatro mil milhões de anos para engravidar Maria e vir cá salvar-nos sabe-se lá de quê. Cientificamente mais plausível é a alternativa de que este relato é apenas uma de muitas ficções semelhantes que a humanidade tem inventado. É claro que qualquer crente pode rejeitar os critérios da ciência e guiar-se pela sua fé. Está no seu direito. Mas é falso afirmar que a ciência “não diz nada acerca de Deus”. O crente é que não a quer ouvir*.

A outra questão que ficou pouco resolvida foi-me posta pelo Miguel Guimarães, que se tinha apresentado como médico e católico. Pelos critérios que descrevi, apontou o Miguel, eu em 1633 teria também condenado Galileu por não ter dado provas conclusivas do seu modelo heliocêntrico. Se Galileu não tinha mesmo provas adequadas para o heliocentrismo, então, admito, competia à ciência encarar o seu modelo como especulativo e aceitá-lo para publicação apenas como um position paper ou algo do género. Mas nunca seria admissível condenar Galileu a prisão domiciliária para o resto da vida ou ameaçá-lo com tortura para o obrigar a abjurar a sua tese. Esta diferença entre rejeitar hipóteses e condenar pessoas a prisão ou tortura parece-me bastante clara mas, a julgar pelas vezes que já a discuti com o Bernardo Mota, temo que também não tive muito sucesso a explicar isto ao Miguel Guimarães.

A conversa com os outros dois oradores foi menos problemática porque o Joaquim Carreira das Neves propôs que o que importava de facto era a pessoa, um valor fundamental transversal às várias religiões e até ao ateísmo, e não os detalhes em que divergem, proposta essa logo apoiada pelo Paulo Borges e por mim. Estabelecido esse consenso restou pouca motivação para discordarmos. Mas isto permitiu-me rematar a conversa apontando que essa ideia implica que podemos livrar-nos dos dogmas e das crenças religiosas mantendo o mais importante, que é ser pessoa, e que isso, no fundo, é ateísmo.

* É verdade que muitos cientistas preferem afirmar que a ciência não diz nada acerca de Deus, que são coisas separadas, como se fosse possível à ciência ignorar um ser omnipotente se ele existisse.

PS: está aqui a minha apresentação. O tema que o João me propôs foi “Líderes espirituais”, mas acabou por me sair isto:

Em simultâneo no Que Treta!

11 de Janeiro, 2013 Carlos Esperança

Vaticano – Estado ou Offshore?

Guerra entre o Banco de Itália e o Vaticano acaba com retirada de máquinas ATM

As máquinas ATM (vulgo multibanco) estão a ser retiradas da cidade-estado do Vaticano, por ordem do Banco de Itália, que teme que não estejam a ser ali aplicadas as regras da União Europeia que previnem a lavagem de dinheiro.

Todos os bancos italianos estão a retirar-se da cidade, onde foram também bloqueados todos os pagamentos eletrónicos, inclusive com cartão de crédito.

11 de Janeiro, 2013 Carlos Esperança

MALALA YOUSAFZAI

Por

António Horta Pinto

Esta menina paquistanesa, hoje com 15 anos de idade, é uma autêntica heroína pela sua luta contra a opressão do extremismo islâmico.

Com apenas 11 anos, e numa zona do Paquistão dominada pelos terroristas talibãs, que nessa zona proibiram a frequência de escolas por crianças e jovens do sexo feminino, iniciou uma campanha pelo direito das mulheres à educação e continuou a frequentar a escola secretamente.

A retaliação não se fez esperar: em 9 de outubro de 2012, militantes talibãs tentaram assassiná-la a tiro, causando-lhe lesões no crânio, de que ainda não recuperou completamente. Apesar disso, promete continuar a sua luta, em que arrisca a própria vida.

Nestes tempos de generalizada indiferença e cobardia, esta adolescente é um exemplo de coragem para jovens e adultos de todo o mundo, inclusivamente de regiões onde vigoram condições muito menos adversas e perigosas. Mesmo na Europa e até em Portugal, onde existe liberdade de expressão e de manifestação, custa ver grande parte da juventude, que atualmente tantas razões tem para lutar pelos seus direitos e pelo seu futuro, mergulhada num incompreensível amorfismo e até – é triste dizê-lo, mas infelizmente é verdade – conivência com o Poder que oprime toda a sociedade.

Como vão longe os tempos, cronologicamente não muito longínquos, em que os jovens de todo o mundo dito “ocidental”, fraternalmente unidos, lutavam pela liberdade, contra o conservadorismo reinante, pela emancipação das mulheres, contra as ditaduras vigentes em países como Portugal, Espanha e Grécia, contra o racismo nos E.U.A. e na África do Sul, contra a guerra do Vietnam e as guerras coloniais portuguesas, pela democratização do ensino e por outras causas justas. E a verdade é que essas lutas vieram a tornar-se vitoriosas.

Só pelo seu exemplo de lutadora, esta jovem merecia mais do que ninguém um Prémio Nobel. Muito mais certamente do que a decrépita União Europeia que, hoje dominada por agiotas e pervertida por interesseiros egoísmos nacionalistas, rendida ao “vil metal” e destituída de quaisquer ideais, de União já não tem nada.

10 de Janeiro, 2013 Carlos Esperança

A ICAR e o antissemitismo

O porta-voz do Vaticano demarcou-se esta terça-feira das declarações sobre os judeus proferidas pelo responsável máximo da Fraternidade Sacerdotal de São Pio X (FSSPX), um movimento tradicionalista fundado pelo falecido arcebispo Marcel Lefèbvre. (…)

A polémica surgiu após uma conferência do bispo Bernard Fellay, superior geral da FSSPX, que apresentou maçons, modernistas e judeus como “inimigos da Igreja” ao longo dos séculos.

Diário de uns Ateus – A ICAR começa a ter vergonha do seu passado e dos Evangelhos.

10 de Janeiro, 2013 Carlos Esperança

A tradição, a laicidade e a traição

A Igreja católica goza de privilégios incompatíveis com a laicidade a que o Estado está obrigado. Há situações bem piores, e trágicas, onde as teocracias se mantêm instaladas, mas isso não exonera o Estado português da obrigação de defender a igualdade entre os cidadãos e de se declarar incompetente em questões de fé.

A ausência de sentido de Estado e de respeito pela Constituição permitiu ao atual PR ter sido presidente da Comissão de Honra da canonização de Nun’Álvares Pereira, a cuja intercessão se deve a cura do olho esquerdo de uma cozinheira que o queimou com óleo fervente de fritar peixe. Não descubro como o economista de Boliqueime soube que foi D. Nuno e não Afonso Costa, por exemplo, o autor do milagre.

É um abuso de qualquer religião a interferência na esfera pública, tal como a ingerência do Estado no mundo das religiões.

A neutralidade do Estado é condição sine qua non para evitar conflitos religiosos. A própria Espanha, onde a Igreja conta com um Governo amigo do peito e da hóstia, já se encontra em litígio por causa das leis da família. O cardeal Rouco deseja o regresso ao franquismo e Rajoy pretende manter um módico de sentido de Estado.

Sabemos o que custou à Europa a liberdade religiosa. Só após a Guerra dos 30 Anos, graças à paz de Vestefália, foi possível viver sem acreditar ou crer de forma diferente do Papa. A Igreja católica só aceitou a liberdade religiosa durante o concílio Vaticano II, reconhecimento que Bento XVI tem mitigado com azedume e ranger de dentes.

Não se percebe que em época de contenção salarial o Estado português continue a pagar o ensino religioso em escolas oficiais, a professores livremente nomeados e exonerados pelo bispo da diocese, ou a subsidiar escolas religiosas onde a coeducação é proibida e as leis da família, votadas livremente pelos portugueses, combatidas pelo proselitismo beato de quem respeita a vontade divina sem prescindir da remuneração profana.

Invocar a tradição é apelar à traição. Só a laicidade garante a liberdade religiosa.

«O Estado também não pode ser ateu, deísta, livre-pensador; e não pode ser, pelo mesmo motivo porque não tem o direito de ser católico, protestante, budista. O Estado tem de ser céptico, ou melhor dizendo indiferentista» Sampaio Bruno, in «A Questão religiosa» (1907).

9 de Janeiro, 2013 Carlos Esperança

A catequese católica de há 60 anos

As palavras piores que balas: almas a arder no azeite fervente do Inferno; garfo de 3 dentes a empurrá-las para o fundo; chumbo derretido nos sulcos feitos por uma tenaz incandescente. A perversidade não tinha limites.

Os garotos choravam e as duas solteironas (tia e sobrinha) aproveitavam para fazer rezar mais um terço.

9 de Janeiro, 2013 Ludwig Krippahl

Treta da semana (passada): quem conta um conto…

O Gonçalo Figueira, no Expresso, escreve que Dawkins levou «um “puxão de orelhas” de outro grande cientista […] o físico Peter Higgs» por ter afirmado «numa entrevista ao canal árabe Al Jazeera ,[…] que para uma criança, ser educada na fé católica era pior do que ser abusada sexualmente por um padre […] Em resposta a isto, Higgs reagiu em entrevista comentando que “o que Dawkins faz com demasiada frequência é concentrar o seu ataque nos fundamentalistas. […] Quer dizer, ele próprio é quase um fundamentalista, de certa forma”.»(1). No entanto, a notícia que o Gonçalo refere e na qual aparentemente se baseou descreve o caso de forma diferente. Nem o The Guardian nem a entrevista de Higgs ao El Mundo sugerem que a crítica de Higgs esteja relacionada com a entrevista de Dawkins à Al Jazeera. O que vem no The Guardian é que críticas como as de Higgs «não levaram o biólogo [Dawkins] a suavizar a sua posição acerca da religião. Numa recente entrevista na al-Jazeera, ele insinuou que ser criado Católico seria um pior abuso para uma criança do que o abuso físico por parte de um padre.»(2)

Além disso, o que Dawkins aponta nessa entrevista é o problema da sociedade permitir aos padres abusos psicológicos muito mais graves do que certos abusos sexuais que se condena. Se um padre andar a apalpar as raparigas da catequese é consensual que seja demitido e talvez até preso. No entanto, o tormento da criança é muito menor do que se a convencerem de que uma amiga falecida está no inferno porque era protestante, um exemplo relatado ao Dawkins na primeira pessoa. O entrevistador, não percebendo que o ponto principal é a inconsistência de critérios – o padre que traumatiza a criança com estórias do inferno no máximo será criticado por alguma imprecisão teológica mas nunca preso pela moléstia – diz que Dawkins não pode generalizar a partir de um caso e pede à audiência para se pronunciar. Curiosamente, um terço dos presentes acha que o abuso sexual é pior, um terço acha que são ambos igualmente maus e um terço concorda com Dawkins. No contexto da entrevista não parece que a posição de Dawkins seja tão absurda como o Gonçalo Figueira faz parecer (3).

A critica de Higgs, ao chamar a Dawkins fundamentalista por «concentrar o seu ataque nos fundamentalistas», também não chega a ser um “puxão de orelhas”. Já há uns anos que Dawkins respondeu a esse tipo de críticas, apontando a diferença entre o fundamentalismo e a paixão com que se defende uma posição (4). Mas, mesmo considerando “fundamentalismo” num sentido mais metafórico, de qualquer posição intransigente, não é claro sequer que seja uma crítica. Porque quando estamos a considerar o fundamentalismo religioso, que pode chegar a extremos como o de apedrejar raparigas até à morte pelo crime de quererem ir à escola, o difícil é ter uma posição conciliadora ou tolerante. Não vejo como justificar uma oposição ao fundamentalismo religioso que não seja também, neste sentido mais lato, uma oposição fundamentalista. Crítica merecem os milhões de crentes que, dizendo-se moderados, também só se opõem moderadamente às barbaridades dos outros milhões de crentes assumidamente fundamentalistas.

O Alfredo Dinis também menciona as críticas de Higgs na «recente entrevista ao jornal El Mundo, de que dá conta o jornal britânico The Guardian […] Uma das bandeiras de [Dawkins] é a afirmação repetida até à exaustão, de que há uma incompatibilidade entre ciência e religião. Higgs coloca a questão de um modo radicalmente diferente e mais próximo da realidade»(5). Na verdade, Higgs não está longe da realidade, mas se o Alfredo tivesse procurado a entrevista ao El Mundo em vez de se ficar pelo relato no The Guardian notaria uma ressalva importante na posição de Higgs: «considera que a ciência e a religião “podem ser compatíveis, desde que não se seja dogmático”»(6). Exactamente.

Se não se for dogmático, a fé é apenas uma questão pessoal à qual a ciência se mantém alheia. A pessoa pode gostar de bacalhau, coleccionar cromos e rezar aos santinhos sem que daí resulte qualquer incompatibilidade com a ciência. Mas o dogma religioso afirma como verdade proposições desprovidas de qualquer outro fundamento que não a crença em si, e isso é inadmissível em ciência. Ou seja, na posição de Higgs, com a qual eu concordo, o Alfredo Dinis pode tornar a sua religião compatível com a ciência se rejeitar todo o dogma da Igreja Católica, mas enquanto lhe restar algo de dogmático a religião do Alfredo não será compatível com a ciência. Admito que é duvidoso que possa haver religião sem dogmas, mas isso é um problema para o Higgs. Eu, precisamente por isso, em vez de dizer que a religião é compatível com a ciência desde que não inclua dogmas prefiro dizer simplesmente que são incompatíveis. Mas se o Alfredo preferir a formulação de Higgs, por mim também está bem. No fundo vai dar ao mesmo.

1- Expresso, Richard Dawkins: ser abusado em criança é menos mau do que ter uma educação católica.
2- The Guardian, Peter Higgs criticises Richard Dawkins over anti-religious ‘fundamentalism’.
3- Entrevista do Dawkins na al-Jazeera, Special Programme – Dawkins on religion, a partir dos 19min e 30s.
4- Dawkins, How dare you call me a fundamentalist
5- Alfredo Dinis, Higgs põe os pontos nos iis a Dawkins… e a Krauss
6- El Mundo, Peter Higgs: ‘No soy creyente, pero la ciencia y la religión pueden ser compatibles’

Em simultâneo no Que Treta!

9 de Janeiro, 2013 Luís Grave Rodrigues

Religião