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Reducionismo.

Alguns apologistas religiosos acusam a ciência de reduzir o importante a meras hipóteses, queixando-se de que se perde assim o que há de melhor na vida. Ou, como escreveu o Nuno Gaspar, «A hipótese de reduzir o que não se sabe nem se pode saber a mera hipóteses não tem trambelho.» É verdade, mas é também um mal entendido. A ciência é o melhor método para avaliar hipóteses e encontrar as que representam a realidade da forma mais correcta. O que não seja hipótese acerca da realidade está fora da ciência, é verdade, mas continua a existir e a ter a importância que lhe quisermos dar, seja o macramé, os desejos, as anedotas, a poesia ou o pastel de nata.

Um ponto que tenho salientado várias vezes é que a ciência é o melhor método para avaliar quaisquer hipóteses acerca da realidade. Há quem defenda a compatibilidade entre religiões e ciência com o truque de cingir as hipóteses religiosas ao que não se pode testar, mas isto não as tira do domínio da ciência. O que acontece é que a ciência rejeita essas hipóteses em favor de alternativas mais simples e que possam ser testadas. Por exemplo, em vez da hipótese de uma pessoa se ter curado de uma doença incurável pela intervenção milagrosa e indetectável de um deus invisível podemos considerar a alternativa, mais simples e teoricamente testável, do médico se ter enganado no prognóstico inicial e a doença, afinal, ter cura.

Mas o que queria focar neste post é o reverso da medalha. A ciência lida só com hipóteses acerca da realidade mas não tira nada ao resto. Conhecer as reacções químicas da cozedura do pastel de nata e a fisiologia do paladar e do olfacto não desvaloriza a experiência de comer um pastel de Belém quentinho e polvilhado de canela. Pelo contrário. O conhecimento sistemático e empiricamente validado da ciência dá-nos a possibilidade de ter experiências que nunca teríamos sem esse conhecimento e, além disso, permite interpretá-las correctamente. Contemplar o céu estrelado sabendo que as estrelas são enormes esferas de plasma com milhões de anos de idade a milhares de anos-luz de distância é melhor do que julgar que são furinhos na lona celeste. Além disso, ao exigir validação empírica das hipóteses, a ciência está sempre ancorada na nossa experiência. A teoria da relatividade é uma construção abstracta e simbólica mas prevê efeitos observáveis. Quando, num eclipse, se vê as estrelas à volta do Sol na posição errada mas exactamente onde a relatividade prevê experimenta-se, como quem come um pastel de nata, o encaixe delicioso entre a teoria e a realidade que esta descreve. Esta ligação entre as hipóteses e a realidade é algo que se sente cá dentro, uma experiência profunda e arrebatadora.

Ironicamente, o reducionismo de que acusam a ciência acaba por ser um defeito da religião. Por dar mais valor a hipóteses testáveis, a ciência encaminha-nos para a compreensão correcta das nossas experiências. As religiões modernas, ao fugir da testabilidade, vagueiam no sentido oposto, afastando-se tanto da correcção como da experiência. Não ponho em causa a intensidade com que os crentes vivem a sua crença, mas a crença é apenas o apego à hipótese. Não se crê nas entidades em si, nem em Deus, nem na Lua nem nos pasteis de nata. Crer é algo que só se pode fazer com proposições. Ou seja, hipóteses. É isso que o crente faz. O católico, por exemplo, acredita na hipótese de haver um criador eterno de todo o universo que é três pessoas numa só substância, omnipotente, omnibenevolente e essas coisas assim. Nada disso é algo que se possa experimentar. Na ciência, mesmo as entidades mais distantes daquilo que podemos sentir, como o electrão ou o Big-Bang, inserem-se em cadeias de hipóteses testáveis ancoradas na nossa experiência. Os deuses modernos não têm nada disso. Não se vêem nem se sentem e nem sequer o que se diz acerca deles tem qualquer fundamento no que podemos experimentar.

Antigamente, os deuses eram mais concretos. O dos evangélicos ainda é. Atira furacões aos homossexuais e criou o parasita da malária só porque quis e pronto. Mas essas hipóteses são testáveis e claramente treta. Por isso, muitos crentes refugiam-se da realidade postulando teologias puramente abstractas. Mas tanto isolam as suas hipóteses da experiência que já só lhes sobra as hipóteses em si. Se pedimos para explicar a diferença entre acreditar em Deus ou no Pai Natal só alegam que, por hipótese, Deus é um ser diferente do Pai Natal e que têm mais fé nas hipóteses acerca de Deus do que nas outras. Ou seja, em vez de alguma evidência que se possa partilhar pela experiência reduzem tudo à hipótese que escolheram e à esperança de que seja verdadeira. Isto não só lhes deixa as hipóteses penduradas no domínio abstracto, abstruso e absurdo da especulação teológica como acaba por reduzir o que há de mais importante à hipótese em si. Acerca do pastel de nata podemos considerar muitas hipóteses para testar, teorizar e dialogar mas podemos sempre comê-lo também. Sem essa experiência o resto não faria grande sentido. Acerca dos deuses cada um manda os seus bitates e é só com isso que fazem a festa toda.

1- Comentário em Saber se existe.

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