Treta da semana (passada): o filme.
“A inocência dos muçulmanos” é um filme horrível que, dizem, insulta Maomé (1). O filme foi produzido inicialmente com o título “Guerreiro do deserto” mas depois, sem conhecimento da maioria dos participantes, foi alterado para dizer mal de Maomé (2). A licença de filmagem foi obtida por uma organização fundamentalista cristã e o filme produzido foi por um cristão copta, aparentemente para chatear os muçulmanos (3,4). Depois de uns meses esquecido no YouTube, agora parece que suscita protestos violentos. Nos países mais civilizados, onde a religião tem menos poder, repudia-se a violência mas manifesta-se solidariedade com os muçulmanos ofendidos. No Brasil, até os participantes na Caminhada pela Liberdade Religiosa, ironicamente, condenaram o filme porque «desrespeita o profeta Muhammad»(5). Liberdade sim, mas respeitinho. Nos países e grupos onde o Islão tem mais influência o filme é desculpa para partir, incendiar e matar. Não é por ser uma religião mais violenta do que as outras, porque a violência de qualquer religião depende apenas do que lhe deixam fazer. Até o budismo, agora tão fofinho, foi bem tramado quando estava por cima (6). Também não é por a violência vir de quem não entende o verdadeiro Islão. Os que partem, incendeiam e matam são muçulmanos desde que nasceram. Têm tanta legitimidade como qualquer outro para dizer o que é verdadeiro na sua religião. O problema fundamental é a deturpação generalizada do tal “respeito”.
O respeito é a aversão a fazer mal ao outro. Portanto, não faz sentido respeitar crenças ou ideologias. Esse chavão comum, em qualquer discussão sobre crenças, de se dizer respeitador da opinião contrária é absurdo. Pode ser boa educação, como tirar o chapéu, mas não passa de um berloque retórico (7). E quando é levado a sério é uma chatice porque respeitar opiniões implica desrespeitar quem delas discorde. Eu não respeito o islamismo, nem o cristianismo nem o ateísmo, tal como não respeito a regra de três simples, nem a raiz quadrada de dois nem a Serra de Montejunto. Eu só respeito seres que sentem, como cães, golfinhos, macacos e humanos. Por isso não vou condenar ninguém por “insultar” o ateísmo, Darwin ou o Judo Clube de Odivelas e não vou “respeitar” crenças ou preconceitos em detrimento das pessoas.
Infelizmente, religiões e ideologias dessa índole têm de o fazer. Respeitar as pessoas implica, pelo menos, reconhecer-lhes liberdade de consciência e de expressão. Mas se uma religião não subjuga este respeito a um “respeito” ainda maior pelos dogmas que a identificam acaba por se desfazer ou por se transformar noutra que o faça. A violência à conta deste filme é apenas um de muitos exemplos do que acontece quando se respeita mais as ideologias do que as pessoas.
Pode-se dizer que este desrespeito não é a categorias religiosas abstractas sim às pessoas que se ofendem com o filme. Mas dá no mesmo porque o que ofende estas pessoas é o ataque ás suas crenças. A propósito do filme, a presidente da Federação Israelita do Estado do Rio de Janeiro disse que «são condenáveis quaisquer ataques a personalidades e símbolos religiosos», explicando que «Não gosto que façam com os meus, não farei com os outros»(5), mas é óbvio que esta não pode ser a justificação completa. Nem a ofensa é só questão de gosto nem o gosto justifica a condenação. A premissa implícita é de que esta categoria arbitrária das «personalidades e símbolos religiosos» merece mais respeito do que as pessoas a quem nega o direito de a “atacar”. E isto é verdade para a ofensa em geral. Sentir-se ofendido com a expressão de uma ideia não é um acto meramente passivo de desagrado. Exige decidir que essa expressão desrespeita alguma categoria que é ilegítimo desrespeitar, seja a profissão da mãe, a honestidade do clube ou a sacralidade do profeta. Ou seja, decidir que essa categoria merece mais respeito do que as pessoas.
As reacções ao filme, e as reacções às reacções, ilustram este problema fundamental na religião. Não acho o filme uma boa ideia, tal como não me agrada, por exemplo, alguns posts do Luís Grave Rodrigues (8). Por respeito pelas pessoas evito provocar só para chatear. No entanto, se alguém foi enganado e lhe posso explicar o embuste, maior desrespeito seria ficar calado e ajudar o vígaro com o meu silêncio. Por isso, chamo a treta pelo nome e quem se ofender que se ofenda. Seja como for, se respeitamos as pessoas temos de aceitar que se exprimam como entenderem, gostemos ou não. Até o tipo que fez este filme merece respeito e tem o direito de dizer o que pensa. Reprimir qualquer expressão por não se conformar a uma ideia do que é aceitável, próprio ou sagrado é “respeitar” a categoria desrespeitando a pessoa, um erro absurdo que é evidente em muitas facetas da religião. Na retórica vácua do respeito pelas opiniões quando o politicamente correcto o recomenda. Nas queixinhas de intolerância e ofensa quando faltam os argumentos para defender uma crença mais querida. Na importância auto proclamada das autoridades religiosas e na condenação de «quaisquer ataques a personalidades e símbolos religiosos». E, finalmente, na violência contra pessoas em nome de seres míticos e conceitos abstrusos. O traço comum nesta gama do inconsequente ao intolerável é sempre o de respeitarem mais os dogmas do que as pessoas. O caso à volta deste filme mostra-o claramente, felizmente sem sequer ser preciso ver o filme.
1- YouTube, Innocence of Muslims
2- Huffington Post, Anna Gurji & ‘Innocence Of Muslims’: Horrified Actress Writes Letter Explaining Her Role
3- Huffington Post, ‘Innocence Of Muslims’ Shot On Hollywood Set, Film Permit Connected To Christian Charity
4- Huffington Post, Christian charity, ex-con linked to film on Islam
5- ECB, Caminhada da Liberdade Religiosa condena filme com ataque a Maomé
6- Wikipedia, Human Rights in Tibet, the teocratic system
7- Por exemplo, estes posts do JFD, Ateísmo, Ateísmo, uma re-resposta., Ateísmo, finalizando, têm sempre a ressalva do respeito pelo ateísmo e outros ismos em geral. O que não é claro é que diferença isso faz.
8- Como estes Conversas com Deus, Pai. Não é o meu estilo. Mas, ao contrário da presidente da Federação Israelita do Estado do Rio de Janeiro, não defendo que se proíba só por isso.