Humor de Verão – O Sequestro
O comboio seguia, suavemente, a sua marcha. Lentamente, se considerarmos que é lenta uma velocidade de setenta quilómetros à hora para um Alfa Pendular (…) A calma, uma calma densa, espessa, quase palpável, tinha-se instalado, silenciosamente, no interior das carruagens. Uns entretinham-se a ler, outros a mandar mensagens pelo telemóvel, aquele ali atreveu-se a ler o “Memorial do Convento”, e dava gosto vê-lo a avançar e a recuar as páginas, numa atitude de quem não tinha percebido nada do que tinha acabado de ler (…) Alguns passageiros chegavam ao ponto de criar empatia com os assaltantes, com quem dialogavam. Casos curiosos se passaram, curiosos e dignos de registo, como aquela senhora, de saia cinzenta até abaixo do joelho que, mesmo junto ao “Padre Inácio”, desfiava furiosamente um rosário, já ia a meio do segundo terço, os lábios movendo-se freneticamente, talvez porque tivesse concluído que tempo é dinheiro também nas orações, neste caso não se trataria de dinheiro mas sim de graça, sim, porque era graça aquilo que a passageira invocava, a rapidez dos movimentos labiais indicava, sem margem para dúvidas, a velocidade a que as “ave-marias” eram despachadas em direcção ao Altíssimo, as contas de prata passando pelos dedos nus, o crucifixo balançando com patética angústia na extremidade do pio objecto. “Padre Inácio” observava, curioso, o rápido movimento labial que realçava o elegante e bem aparado buço, e lembrava-se dos tempos em que, numa atitude sem precedentes nem subsequentes, o padre Celestino o incumbira de rezar as novenas do mês de Maio, frete a que Adeodato Inácio se entregou a contragosto, e do escândalo que rebentou quando os fiéis começaram a notar que o “Padre Inácio” rezava oito “ave-marias” em vez das dez estabelecidas, grande sacana, estar a gamar duas “ave-marias” entre um “pai-nosso” e uma “glória”, no fim do terço acabavam por ser dez, sim, senhores, DEZ “ave-marias” em falta, “Padre Inácio” estava-se borrifando para o que os fiéis, mais exactamente as fiéis, pudessem pensar, queria era acabar com aquele suplício o mais depressa possível, mas a passageira a que aludo rezava as contas todas, uma por uma, portanto sem qualquer arremedo de batota, movimentava os beiços à velocidade que considerava adequada, indiferente às dúvidas filosóficas do ex-sacerdote, e repetia, incansável, o terço, presumivelmente na esperançosa expectativa, passe a redundância, de que a Senhora se dignasse ouvi-la, costuma-se dizer que água mole em pedra dura tanto dá até que fura, neste caso até mereceria uma atitude positiva por parte da destinatária das orações, nem que fosse uma resposta a despachar, do tipo a ver se a gaja se cala de uma vez, até que foi interrompida por “Padre Inácio”:
— A senhora desculpe, mas não posso deixar de notar o fervor com que reza…
A passageira endereçou-lhe um olhar furibundo:
— Tem que ser! Estou a rezar para que Nossa Senhora nos proteja.
— Desculpe… Nos proteja, de quê?
— De quê?! Ora essa! Nos proteja de bandidos como você!
“Padre Inácio” sentiu como que um sopapo no estômago. Nunca ninguém lhe tinha chamado “bandido”, pelo menos assim em voz alta. Sentiu-se triste, mas decidiu que, dadas as circunstâncias, e até porque tinha vestido a respectiva pele, refiro-me à pele de lobo, era melhor engolir o insulto, mas mantendo a esperança de que não lhe desse qualquer indigestão, odinofagia, dispepsia que fosse. Ensaiou um sorriso meio idiota, e tentou ir às boas com a beata passageira:
— Mas nós já dissemos que não queríamos fazer mal a ninguém…
— Sinal de que as minhas preces foram atendidas. Nossa Senhora nunca me faltou com as suas bênçãos.
“Padre Inácio” decidiu remeter-se ao silêncio, por agora, limitando-se a observar os movimentos labiais da piedosa senhora, e indagando-se acerca da razão por que, rezando em silêncio, as pessoas movimentam os lábios. Que os movimentassem quando rezavam com o sistema de “alta-voz” ligado, compreendia-se, havia necessidade de se criar um uníssono, para que as palavras chegassem ao céu de forma apurada, num coro perfeito, não fazia sentido uma dizer “ave-maria” e outra já ir no “o Senhor é convosco”, dá para imaginar o raio da confusão, lá em cima não daria para perceber fosse o que fosse, Nossa Senhora nem conseguiria saber o que é que estavam a rezar. Mas no caso sub júdice, que é como quem diz, no caso em apreço, não se justificava, uma vez que a senhora rezava sozinha, e podia perfeitamente marcar o seu próprio ritmo, não dependia de nenhum maestro, o compasso seria o que ela decidisse, nada há como a liberdade de escolha, mas a verdade é que a senhora continuava a movimentar os lábios, cada vez mais rapidamente, como se da rapidez dependesse a execução do pedido, fosse ele qual fosse mas não se trata, certamente, de protecção já que, quanto a este tema, o esclarecimento de “Padre Inácio” tinha sido mais do que eloquente.
(…)
Postado de frente para o sentido da marcha, na carruagem-bar, que separava a carruagem “Conforto” das carruagens da classe turística, “Padre Inácio” observava a beata que, incansável, continuava a desfiar o terço.
— Se calhar já pode parar – sugeriu Adeodato Inácio docemente, numa tentativa de quebrar o gelo. – Como viu, não vamos fazer mal a ninguém, já não precisa de rezar mais.
— Preciso, preciso – retorquiu a pia mulher. – Preciso rezar para que Nossa Senhora mande um raio que os fulmine a todos, seus grandessíssimos bandoleiros! – prosseguiu a pia e bondosa senhora, esquecendo-se, lamentavelmente, daquela cena do “assim como nós perdoamos aos nossos inimigos”.
Já a desistir de fazer as pazes com a fanática dama, “Padre Inácio” não conseguiu conter o sarcasmo:
— E olhe uma coisa, tiazinha: tem a certeza de que essas coisas das rezas dão algum resultado? Olhe que eu tenho alguma experiência no ramo, e nunca dei fé de que isso servisse fosse para o que fosse…
Adeodato Inácio sentiu algo de estranho; atrás de si, a porta automática abria-se. Instintivamente, voltou-se, mesmo a tempo de ver uma loira bonita e um punho fechado avançando velozmente, num irrepreensível e implacável “yatsuki” . Sentiu uma pancada seca na ponta do queixo, e mergulhou na escuridão. Tão rapidamente, que nem teve tempo de ouvir a beata matrona declarar:
— Como vês, resulta, homem de pouca fé!
José Carlos Moreira in “O Alfa das 10 e 10”, Papiro Editora, Abril 2011